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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Significado de ‘rezar pelos defuntos’


 «Desde os primeiros tempos, a Igreja honrou a memória dos defuntos, oferecendo sufrágios em seu favor, particularmente o Sacrifício eucarístico para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus. A Igreja recomenda também a esmola, as indulgências e as obras de penitência a favor dos defuntos:


«Socorramo-los e façamos comemoração deles. Se os filhos de Job foram purificados pelo sacrifício do seu pai por que duvidar de que as nossas oferendas pelos defuntos lhes levam alguma consolação? […] Não hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer por eles as nossas orações» (Catecismo da Igreja Católica, 1032).

Estamos a viver comunitariamente este tempo de oração pelos defuntos, nisso a que a Igreja chama de dia ‘dos fiéis defuntos’, rezando conjuntamente por todos quantos partiram deste mundo e ‘dormem agora o sono da paz’.

Apesar de nem todos darmos o mesmo significado a este dia e estando em atitude de oração pelos defuntos, vamos abordar a questão em três níveis: humano-afetivo, eclesiológico-litúrgico e escatológico.

1. Na dimensão humano-afetiva

É natural que eu tenha recordação, saudade – neste termo tão português e quase cristão – e tristeza para com alguém que faleceu e a quem eu estava unido por razões de consanguinidade, parentesco, afinidade psicológica (amizade ou laços sociais) e mesmo em razão da fé.

Cada um poderá ter a sua forma pessoal, de grupo e/ou social de exprimir essa ligação/recordação a quem partiu. Se há quem o faça de forma discreta, outros tornam-se mais exuberantes nessa expressão afetivo-emocional. Por vezes certos rituais podem exprimir o modo de entendermos a vida e aquilo que se dará depois da morte. Sem desejarmos distrair do essencial poderíamos recordar um diálogo entre pessoas de culturas diferentes ao observarem os gestos de outros…para com os defuntos. A um que via outro colocar arroz sobre a sepultura, disse: esperas que o teu morto venha comer do teu arroz? Ao que o visado ripostou: e tu pensas que ele vem cheirar as tuas flores?

Mais do que estes ritos ‘culturais’ quase etnográficos, será perigoso o caminho por onde vamos: o esquecimento e quase total abandono da lembrança dos mortos por aqueles que receberam ‘educação’ em vida… Esta privatização da morte vai trazer-nos consequências graves, profundas e nefastas…

2. Na perspetiva eclesiológica-litúrgica

Inseridos na vivência de Igreja – referimos sobretudo na dimensão católica – recordamos, rezamos e intercedemos pelos que partiram ‘antes de nós marcados com o sinal da fé’.

Respigamos, agora, momentos de oração pelos defuntos nas quatro orações eucarísticas mais usadas:
* Oração eucarística I ou cânone romano
Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas N. N. que partiram desta vida, marcados com o sinal da fé. A eles, e a todos os que adormeceram no Cristo, concedei a felicidade, a luz e a paz. Por Cristo, Senhor nosso.
* Na oração eucarística II
- ‘Missa pelos defuntos’: Lembrai-vos do vosso servo/a N., que (hoje) a quem chamastes para Vós. Configurado com Cristo na morte, com Cristo tome parte na ressurreição
Lembrai-vos também dos (outros) nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença.
* Na oração eucarística III
- ‘Na missa pelos defuntos’: Lembrai-vos do vosso servo (da vossa serva) N., que (hoje) chamastes para Vós: configurado/a com Cristo na morte, com Cristo tome parte na ressurreição, quando Ele vier ressuscitar os mortos e transformar o nosso corpo mortal à imagem do seu corpo glorioso.
Lembrai-Vos também dos nossos irmãos defuntos e de todos os que morreram na vossa amizade. Acolhei-os com bondade no vosso reino onde também nós esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória, quando enxugardes todas as lágrimas dos nossos olhos; e, vendo-Vos tal como sois, Senhor nosso Deus, seremos para sempre semelhantes a Vós e cantaremos sem fim os vossos louvores, por Jesus Cristo nosso Senhor.
* Na oração eucarística IV
Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só vós conhecestes.
Estes exemplos em ritmo orante, fazem com que nos sintamos unidos aos que, pela fé e na fé, celebraram connosco e nós, agora, na transmutabilidade de condição corporal queremos associar-nos a eles, quando ainda estamos em condição terrena…

3. Referência escatológica
Nada daquilo que podemos propor e de viver, na linha de uma autêntica fé católica, se pode dissociar deste aspeto de relacionamento com os defuntos em que apontamos para a vivência escatológica, isto é, daquilo que haveremos de viver na condição de glorificados: nós vivemos ainda em circunstância terrena, eles já viram Deus face-a-face.
De facto, a nossa liturgia celebrada aponta para algo mais transcendente: ensaiamos em condição terrena aquilo para o qual aponta a nossa fé. Rezar pelos defuntos é, então, algo mais do que metafísico, é, essencialmente, transformador da nossa vivência em assembleia orante, celebrante ou peregrina: é, em mistério, força de vida que suporta a nossa condição de Igreja.
Como dizemos na aclamação após a consagração: ‘anunciámos, Senhor, a vossa morte, proclamámos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus’!
Queira Deus que sejamos dignos de quantos nos precederam na fé e no testemunho… esses que, agora, são defuntos, não como mortos, mas como orientadores da nossa caminhada, tanto na força que nos dão como na correção que merecemos…

António Sílvio Couto

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