Foi tema
de reportagem num canal televisivo: um padre recém-ordenado recebeu como prenda
das (três) paróquias, onde estivera a fazer estágio, um carro no valor de vinte
e três mil euros…
Se
tivesse sido um professor, um médico ou um engenheiro o beneficiado com um
carro idêntico teria tido ‘honras’ de cobertura televisiva? Não terão sido
vendidos por esses dias veículos ainda mais caros, mas não houve parangonas de
notícia… A quem interessava trazer para a liça este ‘escândalo’: a alguém
discordante da prenda ou a outrem mais fundamentalista e contestatário daquele
‘sinal exterior de riqueza’ de um padre?
Porque
sabemos – este plural não é encobrimento sobre a opinião no singular – que os
padres estão sob escrutínio de bem e de mal-intencionados, quero fazer uma
reflexão por escrito sobre assuntos algo melindrosos…
1. Desde logo será útil, benéfico e
oportuno refletir sobre o ditado popular: ‘bem
prega frei Tomás, segui o que ele diz e não aquilo que faz’! Com efeito,
esta observação coloca-nos diante da exigência de coerência entre o que se diz
– no caso ‘bem prega’ – e o que faz, isto é, a vida que apresenta. As pessoas
são – e bem – exigentes para com quem quer apresentar valores, sobretudo, se
forem no campo do evangelho. Com facilidade cobram as incoerências, mas, com
toda a certeza, não se reveem nas suas mesmas incongruências.
2. Usando a asserção do Papa
Francisco – ‘os padres são como os
aviões, só se fala deles quando caem’. De facto, a busca por episódios de
escândalo são mais noticiados do que a vivência normal do ministério. Ora, os
pretensos ‘escândalos’, normalmente, percorrem os campos do sexo e do
dinheiro…um e outro parecem fazer a delícia dos espetadores, dando a entender
que os casos trazidos à luz do dia podem configurar algo que denuncia as
prevaricações de todos, quando vividas só por um…e ainda na forma presumível,
mas que que se torna afirmativa, quando não passará de uma mera suspeita.
3. Por estes dias celebrou-se a
festa litúrgica de um santo mártir que teve, por incumbência dos perseguidores,
no século III, de apresentar ao imperador os tesouros da Igreja de Roma, dado
que constava que eram de grande valor. O diácono – estava adstrito ao seu
ministério a administração dos bens da Igreja – apareceu, três dias depois, com
os pobres da Igreja romana, dizendo: ‘eis os nossos tesouros, que nunca
diminuem e podem ser encontrados em toda a parte’. Esta espécie de ironia
valeu-lhe ser queimado vivo…
4. Parece ser de grande e atroz
incompreensão para muitos setores da nossa vida social e cultural a capacidade
de entender os conselhos evangélicos – pobreza, obediência e castidade – que têm
norteado milhões de homens e de mulheres desde há vinte e um séculos. «Os conselhos evangélicos são, na sua
multiplicidade, propostos a todos os discípulos de Cristo» (Catecismo da
Igreja Católica, 915). Isto é tanto mais difícil quanto as propostas do mundo –
isso a que o evangelho chama de opositor a Deus em muitas das circunstâncias –
são, exatamente, o contrário: riqueza, poder e luxúria… onde cada um se faz
dono e senhor de si mesmo, fazendo, tantas vezes, os outros seus súbditos e
quase-escravos.
5. Contava-me um bispo, em serviço
num país africano de expressão portuguesa, que, um dia, um rapaz se aproximou
dele e lhe perguntou: bispo, já alguma vez pecou contra a luxúria? Não, que eu
saiba – respondeu o prelado. Mas, querendo explicar a que se referia, ao
aplicar a palavra ‘luxúria’, o pequeno diocesano ripostou: o bispo tem um jeep
novo e pensei que tinha pecado contra a luxúria… Aqui se compreende que
confundiu um possível luxo, do jeep novo, com a luxúria, como sensualidade e
concupiscência…
6. Recordo-me ainda de uma
observação de um velho padre – eu teria uns trinta anos e ele já caminhava nos
oitenta – que me observou com perspicácia: ‘sabes, eles não conseguem
dominar-se e pensam que nós somos como eles’… Refleti, nessa ocasião, sobre as
incidências que ocorriam quanto ao possível apego ao dinheiro que lhe era
atribuído, muito mais do que qualquer outro dos conselhos evangélicos
supracitados.
7. Deixo, em jeito, de
questionamento de toda a Igreja católica, algumas perguntas, mas podem também
ser para outros: temos sabido selecionar, para a vida de sacerdócio
ministerial, quem procure viver, de verdade, os conselhos evangélicos? Certos
sinais de possível riqueza serão compatíveis com o testemunho mínimo de vida?
Teremos sido capazes de viver mais afirmação da dimensão cultural do que na
roupagem do cultual? Certos aspetos de valorização são de exterioridade ou mobilizam
a real opção de vida? Padres ricos ou pobres, de quê? Ser pobre (ou rico) de
quê, como e com que sentido?
António Sílvio Couto
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