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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Interpretações descontextualizadas...

 


A ‘silly season’ (estação ridícula, na tradução literal) deste ano está a revestir uma versão algo religiosa: a partir da 2.ª leitura da missa do XXI domingo do tempo comum (Ano B) uns tantos/umas tantas quiseram trazer para a liça uma discussão algo sem nexo, tanto pelo conteúdo quanto pelo significado: o pretenso papel da mulher, sobretudo na Igreja…católica.

Citamos excertos do texto da ‘tal’ polémica: «Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual é o Salvador. Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela… Assim devem os maridos amar as suas mulheres, como os seus corpos. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo» (Ef 5, 21-28).

 1. Desde logo se pode colocar uma questão: há três anos atrás (2018) foi lido este texto nas missas. As televisões também transmitiram. Mas ninguém reagiu – pelo menos com este alarido – às mesmas palavras. Estaríamos mais absorvidos pelos eflúvios estivais e isso passou-nos ao lado? Será que agora há mais gente a ver as missas televisionadas? As sensibilidades estarão mais acutilantes e o espírito crítico mais atento? As reações havidas foram de pessoas bem-intencionadas ou de picuinhas com má-língua e pior escrita?Algumas das reações roçaram, de facto, a malcriadez humana e deixaram cair as máscaras de ignorância, senão religiosa, ao menos intelectual…

2. Ainda antes da ‘reação’ da Conferência Episcopal Portuguesa, foi-se ouvindo que os textos – bíblicos e não só – precisam de ser enquadrados/contextualizados segundo uma certa hermenêutica e, no caso da Bíblia, atendendo a uma exegese apropriada. Com efeito, São Paulo fala e escreve num contexto específico, tendo em conta o quadro jurídico-social da família, aqui em duas vertentes especiais: a mútua atenção – dito de submissão – e o cuidado entre os esposos. Mas, para alguns, as palavras usadas estariam desadequadas aos ‘critérios’ dos nossos dias e à luz das pretensões de grupos mais redutivos.

Eis um excerto da nota da CEP de 24 de agosto: «então porque não se muda o texto, para que não se deem interpretações incorretas? A pergunta tem a sua razão de ser, mas é claro para a Igreja e para quem quiser interpretar textos e tradições com origem noutras culturas e noutros tempos: os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a atualizá-los. Por exemplo, não se mudam os versos épicos de Camões, porque não correspondem à mentalidade atual e até, em alguns casos, podem causar escândalo. Isso seria cair na arbitrariedade e na ditadura das modas e na imposição da cultura única. É por isso que se estuda Camões nas escolas, para que todos tenham acesso à beleza dos seus versos, dentro dos condicionalismos da sua época».

 3. Diz-se em jeito de enquadramento – ou será de desculpa? – de certas declarações (orais ou escritas) mais ou menos fundamentalistas: foi a coincidência com o que se está a passar no Afeganistão que exacerbou certas posições. Veja-se como os talibans tratam as mulheres. Repare-se nalguma da linguagem dos escritos paulinos lidos. Atente-se a um envolvimento social, político e ideológico propício para atiçar contra a Igreja católica. Olhe-se com mais atenção para todo o processo de afirmação da mulher na (dita) sociedade ocidental, onde quase sempre se tenta fazer imitar a mulher o desempenho dos homens… e isso parece ser razão de evolução das mentalidades…

À guisa de anedótico: já só falta varrer da possibilidade de apresentação dos homens – na cultura ocidental e europeia em particular – o uso da barba, pela simples razão de que os talibans ostentam tal artefacto por motivações religiosas e culturais! Pessoalmente já fui vítima de especial revista, em aeroportos no estrangeiro, por usar barba e, atendendo ao contexto sociopolítico, se me poder assemelhar com tais indesejáveis.

 4. De uma discussão sobre este tema veio-me uma sugestão – mais na linha intelectual e teórica do que como proposta teológica ou eclesiológica…urgente. Por que não refletimos já sobre as incidências do sacerdócio no feminino? Por que teremos de ter só como quadro de comparação o desempenho masculino do sacerdócio na Igreja católica? Não haverá, de entre as várias facetas do ministério sacerdotal, algum aspeto que seria mais benéfico e talvez apropriado à sensibilidade feminina? Não será um erro grave continuar a querer fazer coincidir as posições teóricas com as possibilidades e/ou potencialidades humanas, psicológicas ou afetivas?

Seria algo salutar refletir sobre as questões sem as discutir em defesa ou ataque de nada nem de ninguém. Nem sempre é isso que temos visto nesta questão do sacerdócio no feminino…

Já agora: que dizer de certas formas de música – fado em particular – que ainda hoje estão vedadas às mulheres, na sua cantoria? E dizem-se do meio intelectual… Não se andará a acusar outros para que se não vejam erros idênticos?           

 

António Sílvio Couto

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