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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Descendentes de quem?


 Conta-se, numa espécie de anedótico, que um neto questionou o avô: dizem que nós, portugueses, demos novos mundos ao mundo, que fomos por esse mar fora à descoberta de outros povos… mas agora estamos neste canto da Europa como dos mais pobres…

À questão algo incómoda, o avô respondeu: é verdade, neto, muitos foram por esse mar afora e descobriram coisas, trouxeram riquezas e outros até fizeram fortuna… mas nós somos do que ficámos…

Desde já valerá a pena inquirir de que lado estivemos: dos que foram ou dos que ficaram?  

 1. Temos mais de dois milhões de portugueses emigrados, isto é, 20% da população total … São pessoas com baixas ou muito baixas qualificações… A maioria dos emigrantes está em França (cerca de 600 mil), Suíça (cerca de 200 mil) e com mais de cem mil: EUA, Canadá, Brasil, Espanha, Alemanha e Reino Unido… As diferentes vagas de emigrantes foram deixando a nu a má qualidade do nosso país. Depois da grande vaga das décadas de 60 e 70 do século passado fomos sendo confrontados com etapas de procura de tanta gente – muita dela procedente das regiões rurais do norte e do centro do país – que ousou procurar condições de vida melhores, muitos deles fixados na obsessão do trabalho, sem horários que não fossem para ganhar dinheiro, muito dinheiro com sangue, suor, lágrimas e em condições degradantes… Quem não se envergonha ao ver retratados os bidonvilles dos arredores de Paris? Quem não sente tristeza – como fui testemunha em Zurique – de famílias jovens coartadas das suas raízes e adiando ter filhos, antes de ter meios para os sustentar?

 2. Foram milhões e milhões, as verbas enviadas do estrangeiro para suportar a débil economia do país. Associando a saudade à exploração da vaidade, muitos dos nossos emigrantes foram sendo ludibriados até por bancos insolventes ou falidos. Lá exploraram o cabelo, aqui tiraram-lhes o pelo…Foram estrangeiros em pátria alheia e, por cá, indesejados em solo ingrato… Alguns contribuíram para esta situação de bipolaridade pessoal e social: muitos fecharam-se nas suas associações (pretensamente) culturais, numa primeira geração abjurando quase a língua de acolhimento; tantos outros até fintaram a Igreja para depois virem festejar coisa que lá nunca celebraram… Foi como que uma fé a gosto para enfeitar em agosto… Nalgumas situações até a Igreja católica andou a reboque dos casos e nem sempre soube integrar lá fora, quando por aqui pretende ir corrigindo erros do passado…

 3. Outro fenómeno sacudiu o nosso país, em finais da década de 90 do século findo. Hoje temos milhares de imigrantes que nos ’invadiram’ em busca de melhores condições de vida. Mais de 700 mil, da Ásia e da África ocidental, sem esquecer os países de língua oficial portuguesa e Europa…trabalham, normalmente, como mão-de-obra na agricultura, na hotelaria e na construção…Em certas condições os imigrantes vem fazer tarefas que os portugueses já não querem, mas que os ‘nossos’, quando emigrados, desempenharam.

 4. Há circunstâncias de mobilidade humana, que marcam os tempos atuais. Hoje será difícil encontrar alguém que nasceu, viveu e fez toda a sua vida no mesmo lugar. Isto desconstruiu algumas das certezas de antanho e condiciona a nossa forma de pensar, de agir e mesmo de ser. Tudo se relativiza e, certos bairrismos, além de anquilosados, são bacocos e de má cultura. Há, no entanto, princípios que devem ser ainda cultivados: a relação com a terra – esse torrão onde nascemos e adquirimos identidade – e tudo quanto possa valorizar o compromisso em trabalhar pelo desenvolvimento dos ‘nossos’ espaços de referência.

 5. A mensagem cristã, embora de teor universalista, não pode deixar de participar na construção e na mudança dos ambientes – como dizem certos grupos cristãos. Se cada pessoa é (ou pode ser) alvo da mensagem evangélica, então teremos de saber também denunciar quando se aproveitam do nosso trabalho, no âmbito social, para menosprezar o que os crentes fazem e os arrecadadores de impostos manipulam para favorecer os ‘seus’ apaniguados. Seremos descendentes de quem: dos agiotas ou dos patriotas?    

 

António Sílvio Couto

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