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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Exéquias: com os vivos pelos defuntos


Com a aproximação à celebração litúrgica dos Fiéis Defuntos poderá ser útil refletir sobre a temática das exéquias católicas, sua envolvência e consequências na vida da fé crista.

Deixamos aqui um pequeno estudo sobre o assunto.

 

«As exéquias cristãs são uma celebração litúrgica da Igreja. O ministério da Igreja tem em vista, aqui, tanto exprimir a comunhão eficaz com o defunto, como fazer participar nela a comunidade reunida para o funeral e anunciar-lhe a vida eterna» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 1684).

Algumas perguntas se podem colocar sobre a celebração das exéquias: que sentido tem celebrar exéquias cristãs/católicas a quem não foi minimamente ‘praticante’? Haverá algum sentido dar a quem morreu algo que não quis em vida? Serão as exéquias cristãs para os defuntos ou para os vivos? Se atendermos à marca de índole social que percorre um funeral, será aceitável a sua realização – como momento de possível evangelização – ou deve recursar-se a participar em algo que pode exigir um mínimo de fé? As orações do ritual a quem têm por direta referência: aos vivos ou para com os defuntos? A evocação do defunto é razão ou oportunidade para que se celebrem as exéquias?

 

* Privatização/anonimato da morte…fora do contexto familiar

Se atendermos a todo um processo crescente da privatização – isto é, de fazermos deste momento da vida algo que atinja o foro privado e não incomode ou o faça no mínimo – do tema da morte podemos ver como certos rituais por ocasião da morte até de um cristão na nossa sociedade ocidental estão a ser esvaziados de conteúdo mínimo cristão. Repare-se na difusão do velório em espaços não-familiares, atirando para fora do convívio da família quem partiu. Isto vem sendo acompanhado com o processo de falecimento já não ao pé da família, mas no contexto hospitalar. Foi (ou é) com naturalidade que fomos enquadrando esta vivência, deixando de haver tanta proximidade ao ente querido que morreu. Certamente que os espaços hospitalares fazem o melhor que podem, mas a frieza na partida deixa marcas…Quantas vezes a assistência espiritual-religiosa não consegue colmatar o que o consolo da fé poderia proporcionar.

 

* Etapas das exéquias – casa, igreja, cemitério

«A liturgia romana propõe três tipos de celebração das exéquias, correspondentes aos três lugares em que se desenrolam (a casa, a igreja, o cemitério), e segundo a importância que lhes dão a família, os costumes locais, a cultura e a piedade popular» (CIC, n.º 1686). A isto podemos ainda acrescentar os quatro momentos nos quais se pode desenvolver esta celebração exequial, a saber: acolhimento na comunidade, celebração da Palavra de Deus, eucaristia exequial e encomendação/último ‘adeus’.

O Ritual das Exéquias apresenta alguns momentos de oração ‘no momento da morte’ – feitas por qualquer cristão presente ao ato, mesmo que não seja ministro ordenado – com indicações e sinalética (como traçar o sinal da cruz sobre a fronte do moribundo ou dando-lhe um crucifix a beijar), acompanhada de orações… Outra etapa sugerida pelo Ritual é para a ‘colocação do corpo no féretro’, que é muito mais do que o trabalho de uma ‘agência funeráriia’, associando momentos de oração pelo defunto. Por último, ainda nesta etapa pré-exequial, o Ritual, apresenta um ‘vigília de oração pelo defunto’, na casa do falecido ou na casa mortuária, sugerindo-se também a Liturgia das Horas do ‘ofício de defuntos’.

Ora, tendo em conta alguma experiência pastoral de quase quatro década de ministério sacerdotal, deixo as minhas impressões, atendendo às possibilidades e às condições dos vários casos, lugares e situações.

Desde já fique ressalvado: as exéquias são dos momentos mais propícios à evangelização até mais do que à catequese, tal a possibilidade de uma boa parte dos que nelas participam, pelas razões emocionais que envolvem, poderem aceitar uma palavra de anúncio da Pessoa e da mensagem de Jesus Cristo…atendendo ainda à razoável ignorância, apatia ou mesmo indiferença com que temos de enfrentar, em boa parte desses momentos. o que deveria ser de luto e não de mera convivência social.

Vejamos as três possibilidades – cumulativas ou autónomas – para a celebração das exéquias e qual o seu significado:

Acolhimento: «Uma saudação de fé dá início à celebração. Os parentes do defunto são acolhidos com uma palavra de «consolação» (no sentido do Novo Testamento: a fortaleza do Espírito Santo na esperança. Também a comunidade orante, que se junta, espera ouvir «as palavras da vida eterna». A morte dum membro da comunidade (ou o seu dia aniversário, sétimo ou trigésimo) é um acontecimento que deve levar a ultrapassar as perspetivas «deste mundo» e projetar os fiéis para as verdadeiras perspetivas da fé em Cristo Ressuscitado» (CIC, n.º 1687). Tanto pode haver o acolhimento do féretro na igreja, seguindo-se as exéquias, como se pode verificar esse acolhimento e, posteriormente, serem celebradas as exéquias. Em cada um dos casos estão propostos momentos de escuta da Palavra de Deus – repare-se como é fundamental incluir o que Deus nos quer dizer nesses momentos – bem como o recurso a vários salmos de índole penitencial e também orações onde se coloca quem parte diante de Deus e todos nós em processo de conversão. 

– Temos também a «liturgia da Palavra, aquando das exéquias, [que] exige uma preparação, tanto mais atenta quanto a assembleia presente pode incluir fiéis pouco frequentadores da liturgia e até amigos do defunto que não sejam cristãos. A homilia, de modo particular, deve «evitar o género literário do elogio fúnebre» e iluminar o mistério da morte cristã com a luz de Cristo ressuscitado» (CIC, n.º 1688). Efetivamente, sobretudo, em regiões onde a prática religiosa é menos acentuada esta é a forma mais usada de celebrar as exéquias – ‘exéquias sem missa’. Tal como se refere neste enunciado podemos encontrar nesses momentos oportunidades de evangelização, particularmente de tantos ditos ‘menos crentes’, senão mesmo de muitos outros que estão fora do contexto religioso básico. Por vezes uma palavra corretamente proferida pode atingir quem se disponha a ser tocado por Deus!

Que dizer, então, do desfile de coroas de flores e de salamaleques de circunstâncias por ocasião de tantos funerais? Não se quererão substituir as orações pelos arranjos florais à mistura com conversas sem nexo nem conteúdo? Até quando continuaremos mais ou menos a colaborar/tolerar neste disfarce não assumido? Nota-se uma grande falta de educação humana e cristã nesta etapa derradeira da vida…que ou se tem ou não se inventa!

Exéquias com missa: «Quando a celebração tem lugar na igreja, a Eucaristia é o coração da realidade pascal da morte cristã. É então que a Igreja manifesta a sua comunhão eficaz com o defunto: oferecendo ao Pai, no Espírito Santo, o sacrifício da morte e ressurreição de Cristo, pede-Lhe que o seu filho defunto seja purificado dos pecados e respectivas consequências, e admitido à plenitude pascal da mesa do Reino. É pela Eucaristia assim celebrada que a comunidade dos fiéis, especialmente a família do defunto, aprende a viver em comunhão com aquele que «adormeceu no Senhor», comungando o corpo de Cristo, de que ele é membro vivo, e depois rezando por ele e com ele» (CIC, n.º 1689). De facto, será natural que haja missa de sufrágio por quem viveu em comunhão de Igreja, mas seria algo quase aberrante que se faça ‘missa de corpo presente’ para quem pouco ou nada se fez presente à Igreja em vida. Em certas circunstâncias em regiões onde a prática religiosa é menos significativa seria algo a rever ao celebrar missa por quem não fez comunidade em vida… ou, então, como vai crescendo noutras regiões com mais religiosidade social, estaremos a conferir sacramentalidade sem evangelização. 

– Após a celebração das exéquias, com missa ou sem missa, segue-se a última encomendação e despedida, que consiste no ‘adeus («a Deus») ao defunto é a sua «encomendação a Deus» pela Igreja. É ‘a última saudação dirigida pela comunidade cristã a um dos seus membros, antes de o corpo ser levado para a sepultura’» (CIC, n.º 1690). Efetivamente podem ser usados ainda dois sinais religiosos de respeito pelo ‘corpo onde viveu um cristão’: a água benta, evocativa da água batismal e o incenso como símbolo da oferta das orações dos fiéis a Deus por aquele irmão falecido.

As propostas de oração apresentadas (sete no conjunto) pelo Ritual das exéquias procuram criar nos participantes no funeral uma expetativa de encontro daquele que partiu com Deus – chamado de ‘bom pastor’, Pai de misericórdia – na comunhão de irmãos fundada no batismo e manifestada na Igreja e pela Igreja pela comunhão dos santos… Isso mesmo se exprime no responsório breve: vinde em seu auxílio, santos de Deus. Vinde ao seu encontro, anjos do Senhor. Recebei a sua alma, levai-a à presença do Senhor… ressusscitado. A oração final de encomendação recolhe, em ação de graças tudo quanto Deus concedeu a quem morreu, suplicando a misericórdia infinita e o perdão de todas as fragilidades…

Fazendo-se agora o transporte do defunto para o cemitério ou local de cremação em meio automóvel as propostas para a ’procissão para o cemitério’ quase não têm viabilidade.   

 

* Sepultamento – em cemitério ou pela cremação

Embora esta etapa do sepultamento possa continuar ligada às exéquias, colocamos este tema noutro enquadramento pela razão de queremos abordar a questão da cremação, tentando responder à pergunta: se é lícito ou não um cristão recorrer a esta forma derradeira de tratamento do corpo humano falecido?

As rubricas sobre o sepultamento em cemitério são simples: acolhimento final dos participantes, profissão de fé (a meu ver, caso o defunto tenha sido praticante de fé comunitária), oração dos fiéis e oração final com a bênção e o envio ‘na paz’.

Por razões várias tem vindo a crescer, sobretudo em contextos urbanos, a tendência a optar pela cremação dos defuntos. Por isso, pode ser útil neste contexto de abordagem do sepultamento dos defuntos percorremos o que diz a doutrina da Igreja Católica, desde o Catecismo até a uma Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, de 2016. 

Diz o Catecismo da Igreja Católico sobre o cuidado para com os defuntos: «Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e esperança da ressurreição. Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo». Ora sobre a cremação diz o mesmo Catecismo: «A Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CIC, n.os 2300-2301). Mais recentemente foram aprovados textos e orações para a celebração das exéquias com a possibilidade da cremação…Por vezes não bastará estar atento ao formato do caixão na hora da encomendação, serão precisos mais dados e melhores informações…até sociológicas, culturais e religiosas de tal opção pela cremação.

Com data de 15 de agosto de 2016, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução ‘Ad resurgendum cum Christo’ a propósito da sepultura dos defuntos e da conservação das cinzas da cremação. Depois de algum enquadramento teológico à luz da ressurreição de Cristo, o documento lembra a antiga tradição cristã em que ‘a Igreja recomenda insistentemente que os corpos dos defuntos sejam sepultados no cemitério ou num lugar sagrado’.

É partindo desta teologia e práxis secular que a Congregação para a Doutrina da Fé procura atalhar alguns erros e abusos no que toca ao recurso, entretanto, muito difundido da cremação. A Igreja ‘não pode, por isso, permitir comportamentos e ritos que envolvam conceções erróneas sobre a morte: seja o aniquilamento definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o universo; seja como uma etapa no processo da reincarnação; seja ainda, como a libertação definitiva da “prisão” do corpo’.

Do mesmo modo se insiste que a ‘sepultura nos cemitérios ou noutros lugares sagrados responde adequadamente à piedade e ao respeito devido aos corpos dos fiéis defuntos, que, mediante o Batismo, se tornaram templo do Espírito Santo e dos quais, “como instrumentos e vasos, se serviu santamente o Espírito Santo para realizar tantas boas obras’.

O documento da Congregação para a Doutrina da Fé salienta que ‘onde por razões de tipo higiénico, económico ou social se escolhe a cremação; [esta] escolha que não deve ser contrária à vontade explícita ou razoavelmente presumível do fiel defunto, a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo. Por isso, tal facto, não implica uma razão objetiva que negue a doutrina cristã sobre a imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos’.

Explicando depois o modo de proceder para com as cinzas, a Instrução refere que ‘as cinzas do defunto devem ser conservadas, por norma, num lugar sagrado, isto é, no cemitério ou, se for o caso, numa igreja ou num lugar especialmente dedicado a esse fim determinado pela autoridade eclesiástica’. Com efeito, ‘a conservação das cinzas num lugar sagrado pode contribuir para que não se corra o risco de afastar os defuntos da oração e da recordação dos parentes e da comunidade cristã. Por outro lado, deste modo, se evita a possibilidade de esquecimento ou falta de respeito que podem acontecer, sobretudo depois de passar a primeira geração, ou então cair em práticas inconvenientes ou supersticiosas’.

Sobre a conservação das cinzas e outros artefactos com elas praticados, a Congregação para a Doutrina da Fé salienta que ‘a conservação das cinzas em casa não é consentida... não podendo ainda as cinzas serem divididas entre os vários núcleos familiares e deve ser sempre assegurado o respeito e as adequadas condições de conservação das mesmas’.

Desejando corrigir certas visões e atuações menos respeitosas para com as cinzas dos defuntos, a Instrução diz que ‘para evitar qualquer tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não seja permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar. Exclui-se, ainda a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos, tendo presente que para tal modo de proceder não podem ser adotadas razões de ordem higiénica, social ou económica a motivar a escolha da cremação’.

Ao longo da breve ‘Instrução’, faz-se ainda uma abordagem da correta celebração das exéquias pelo defunto e a posterior atitude de sufrágios...numa leitura e vivência sem oscilações nem fundamentalismos.

 

António Sílvio Couto

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