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terça-feira, 27 de outubro de 2020

Confinados e convidados: da memória ao desafio


Confinados e convidados: da memória ao desafio



Por estes dias, no ritmo e sequência das estações do ano e pelas datas, estamos à porta de assistirmos à romagem anual de muitos dos nossos concidadãos aos cemitérios. Só que, pelas condicionantes sociais estamos confinados a não sairmos do concelho de residência em razão do recrudescimento de nova vaga do covid-19.


À palavra ‘finados’, acrescentamos o prefixo ‘con’, dando o termo ‘confinados’, que tanto pode significar com os finados (mortos, defuntos), como colocar-nos na situação de encerrado, encarcerado, trancado, delimitado… Por seu turno, ‘convidados’ tem na sua composição, essa palavra mais aterradora – de ouvir, de dizer e de enfrentar – que é ‘covid’. Esta pretensa palavra é abreviatura da expressão em inglês – coronavirus disease – isto é, doença do coronavírus.


Sem pretendermos fazer qualquer trocadilho menos bem-intencionado com as palavras e tão pouco com as vivências que lhes estão subjacentes, gostaríamos de centrar esta partilha/reflexão naquilo que os ‘finados’ têm a ver com a nossa memória e quanto o ‘covid-19’ é um implacável desafio ao nosso presente e para com o futuro.


 


= Como interpretar a restrição/condicionamento do ‘culto’ dos finados?


Num tempo ávido da pressa e movendo-se pela superficialidade, a ocorrência do ‘dia de finados’ – liturgicamente dito de Fiéis Defuntos – ainda é (ou pode ser) um tempo de paragem e de reflexão, de gratidão e de memória, de envolvência pessoal e comunitária.


«A comemoração dos finados, o cuidado pelos sepulcros e os sufrágios são testemunho de esperança confiante, radicada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que encontra a sua raiz e o seu cumprimento em Deus» – dizia o Papa Francisco no ‘Angelus’ de 2 de novembro de 2014.


Ora, quando um governo lança a proibição de as pessoas não se puderem deslocar de um concelho para outro por ocasião desta data de comemoração do Fiéis Defuntos (ou finados) não estaremos a condicionar um certo culto, sobretudo, dos cidadãos católicos, que assim são coagidos a enfrentarem a desobediência civil ou o pagamento de alguma multa? Poderá um governo, tenha a cor ideológica que tiver, tornar-se senhor das tradições ancestrais daqueles para quem diz governar? Não andaremos a criar desculpas para não enfrentarmos com verdade e sabedoria a assunção da contingência e da fragilidade, que o dia de finados nos faz assumir? Seremos tão desmemoriados e ingratos que a saudade daqueles que partiram não nos fazem reconhecer que sem eles pouco ou nada seríamos?  Não haverá exagero desconforme ao transtorno social com o encerramento abusivo de muitos dos cemitérios?


Uma breve referência à educação da fé em ordem a uma reflexão séria e serena sobre a vivência do dia de finados, em ordem a um melhor conteúdo cristão: a paróquia deve ser o lugar onde se cultiva a memória, nem que seja disfarçada de saudade pelos que morreram. Diz-nos um documento recente da Congregação para o Clero: «tendo presente quanto a comunidade cristã seja ligada à própria história e aos próprios afetos, cada pastor não pode esquecer que a fé do Povo de Deus se relaciona com a memória familiar e com a comunitária. Muitas vezes, o lugar sagrado evoca momentos de vida significativos das gerações passadas, rostos e eventos que marcaram itinerários pessoais e familiares» – Instrução ‘A conversão pastoral’, n.º 36. Não basta mandar celebrar missas pelos defuntos, se elas não criarem ambiente mais cristão e se não cultivarmos um espírito católico…


 


= Desafios do ‘covid-19’ no presente e para o futuro


Esta pandemia, que se abateu sobre a Humanidade neste ano de 2020, precisa de ser assimilada naquilo que tem de denúncia da nossa fragilidade, nem sempre assumida. Nestas circunstâncias de interdependência na saúde e na doença fica mais claro que todos precisamos de todos e cada um é mais do que uma mera peça da engrenagem economicista em que nos temos vindo a tornar. Num instante passamos todos a precisar de cada um, fazendo com que a nossa história pessoal seja também permeável ao bem dos outros… Acordemos!


 


António Sílvio Couto



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