Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Da ‘licença de isqueiro’…à ‘app stayaway covid’


Quem não for demasiado novo saberá que, no regime do ‘estado novo’, havia uma taxa sobre quem usasse isqueiro, era a chamada ‘licença de isqueiro’, na década de sessenta do século vinte: um papel timbrado, emitido pelo governo, com o custo de dez escudos, o qual devia acompanhar o dono do isqueiro; em caso de falta da licença estava estipulada uma multa no valor de duzentos e cinquenta escudos e, caso o infrator fosse funcionário do governo ou militar, a multa passava para o dobro. O dinheiro recolhido das multas, bem como da venda das licenças, revertia em favor da empresa nacional de fósforos. Dava-se ainda o caso de uma parte das multas ser destinado para o autuante e, na situação de delator (isto é, de alguém denunciar outrem) a percentagem da multa ser-lhe também favorável. O fisco dispunha de ‘fiscais do isqueiro’, quais zelosos cumpridores de uma lei da qual nos rimos de forma contida e embaraçosa… Isto vigorou, em Portugal, entre 1937 e 1970…De referir que a licença era de renovação obrigatória anual!

Trouxemos à colação este fenómeno do regime político anterior para o colocarmos em confronto – tal como outras invenções e taxas que ainda suportamos pela calada das faturas da eletricidade e não só – com essa invenção iluminada da aplicação ‘stayway covid’ apresentada por zelosos mentores em defesa da saúde pública e tentada implementar à força pelo atual governo como forma de conter a epidemia de ‘covid-19’, cada vez mais condicionador do tecido social e devastador de vidas…

Por que não foram os promotores e, sobretudo os legisladores, aos anais da história para verem que estavam a incorrer em algo de nefasto senão mesmo de ridículo? Por que lançaram para a chacota nacional algo que, mesmo à força, está condenado ao fracasso e ao insucesso? Por que quiseram – como noutras circunstâncias menos acintosas – apalpar as reações e não medir as consequências cívicas e políticas do episódio?

O pior de todo este processo da implementação/obrigação em descarregar a aplicação ‘stayway covid’ é a possibilidade de devassa da vida das pessoas mais inofensivas, pois ao trauma de ter passado pela doença – só depois de ‘curado’ lhe seria facultado um código para introduzir no dito sistema de alerta, por parte de um médico e sob a sua autorização – ainda teria de carregar com o medo de poder ser ostracizado pelo resto da população, que saberia estar perante um perigo social, como contagiado e contagioso. Isto não é digno de ser colocado como fardo sobre os ombros de quem já sofreu uma dura provação. Isto colide e ofende quem – e já são milhares de ‘curados’ e Deus queira que haja cada vez mais – esteve entre a vida e a morte.

Mesmo sem dados fiáveis há questões éticas que me incomodam e outras questiúnculas de natureza economicista que me revoltam. Será assim tão gratuito o processo, dado que os mentores precisaram de vir a terreiro reclamar do fiasco da coisa? Dos milhares que se colocaram na defesa dos seus interesses – dizem que mais de dois milhões que fizeram a descarga da ‘app’ – porque houve tão poucos a se submeterem à inquisição da tecnologia? Haveria alguma ‘recompensa’ na mira e os resultados não foram atingidos? Neste mundo de cifrões tudo pode estar subjacente e em causa…à socapa.

Por outro lado, ganha foros de ditadura obrigar todos a entrar na lógica da obrigação. Efetivamente é de muito duvidosa autoridade ameaçar com multas, com invasões da privacidade e até do domicílio. Será que o legislador considera o resto da população a partir das suas possibilidades económicas? Todos os portugueses são obrigados a ter telemóvel e, sobretudo, a ter um que seja capaz de rececionar aquela aplicação? Não andaremos a pensar mais com a soberba do que com os dados reais, que nos dizem que mais de um terço da população portuguesa (dois milhões e meio) vive no limiar da pobreza, isto é, com menos de dez mil euros anuais de irs? Terão todos, assim, capacidade de preencher os requisitos da ‘app stayway covid’?

 

= Se nos rimos da ‘licença de isqueiro’ do regime do estado novo, como não poderemos antes chorar com a prosápia do regime neocoletivista em vigor. Não basta atirar dinheiro para cima dos problemas, se não aprendermos a detetar as questões e não soubermos pensar sobre elas com inteligência e não mera emotividade. Porque defendo a pessoa, particularmente no seu estado de debilidade, sou contra a implementação desta vergonhosa aplicação, defendendo a objeção de consciência e a recusa em pagar qualquer multa…até porque não tenho nem quero ter nem ostentar um telemóvel que possa amesquinhar seja quem for, nesta etapa da nossa fragilização coletiva pelo covid-19…       

 

António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário