Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 14 de abril de 2025

‘Lava-pés’: sinal, imagem e missão

 

«Levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. (…) Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13,4-5.14-15).

Este excerto do evangelho segundo São João é de grande importância teológica, eclesial e espiritual para todos os católicos. Deixo uma breve reflexão sobre o tema, deixando ainda sugestões neste ano jubilar da esperança.

– O texto parece dever ter alguns ‘acertos’ de tradução. Onde se diz ‘levantou-se da mesa’, está no grego: ‘levantou-se da ceia’ (deipnon), como sendo a refeição principal ao cair do dia da família judaica e onde se partilhavam os momentos mais significativos ou, nalguns casos, se discutiam assuntos de interesse para os convivas.

– Outro aspeto que pode ser atendido para que não seja incluída a palavra mesa – ao menos no sentido que nós lhe damos – era a disposição das pessoas na configuração da refeição, pois os comensais comiam recostados sobre o lado esquerdo, comendo com a mão direita. Isso daria outra imagem daquilo que vemos nas representações ‘idílicas’ de tantos quadros alusivos à ‘última ceia’…

– A necessidade de lavar os pés na forma habitual era decorrente de que os caminhos da Palestina eram muito empoeirados e de que, como usavam normalmente, como calçado as sandálias os pés estariam naturalmente sujos. Repare-se nas recomendações de ablução para os atos sociais dos tempos de Jesus… Atos esses que se tornaram, em muitos casos, situações de natureza religiosa e quase de incidência ritual-legal.

– É neste contexto religioso-espiritual que escutamos o texto em que se dá o lava-pés, por certo uma grande surpresa para os discípulos, eles que até tinham estado a disputar, momentos antes, qual deles era o maior (cf. Lc 22, 25-27) e em que fervilhava na mente de Judas a forma de concretizar o projeto combinado com os sumos-sacerdotes e os oficiais do templo (cf. Mt 26, 14-16) de lhes entregar Jesus.

– De referir ainda que se nota um certo paralelo simbólico entre a unção dos pés em Betânia (cf. Jo 12, 1-9) com o lava-pés do cenáculo: ambos acontecem com um intervalo de dias dentro da semana da Páscoa: num como noutro caso dá-se oposição de Judas e de Pedro; uma e outra das ações têm uma perspetiva futura… Poderemos ver um díptico entre a unção dos pés e o lava-pés…

= A lição da toalha

Depois de se despojar do manto – na paixão será despojado das suas vestes à força – Jesus reveste-se de uma toalha (dention, em grego) que colocou à cintura, deitou água numa bacia e começou a lavar – numa posição subalterna à deles, poderemos dizer: de joelhos diante de cada um – os pés aos discípulos. Mais do que com palavras Jesus fala com gestos: Ele serve, embora seja ‘Senhor e Mestre’. Isso de lavar os pés era tarefa dos escravos e Jesus assume essa função para com os seus discípulos.

Jesus lava os pés e enxuga-os com a toalha. Uma nova vertente se pode interpretar desta ação profética de Jesus: se o lava-pés nos faz entrar no mistério da eucaristia – é liturgicamente o sinal da Quinta-feira santa – também podemos perscrutar a necessidade do batismo o que se pode depreender do diálogo entre Jesus e Pedro (cf. Jo 13, 6-10): «Se eu não te lavar, não tens parte comigo» (v. 8b). Isto é, se Pedro não se submetesse a Jesus naquele ato, os dois não teriam comunhão. Pedro, então, respondeu: «Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça» (v. 9). Por seu turno, Jesus diz-lhe: «Quem já se banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais está todo limpo».

= Da imagem à missão

Retomada a normalidade da ceia (v. 12), Jesus vai ajudar, interrogativamente, os seus discípulos a colher as lições apontadas:

– Compreender corretamente o sinal, essa imagem de um Deus que se faz servo e que lava os pés. Esse sinal exige capacidade de fé para que possa manifestar esperança pela caridade… nem Judas teve um tratamento diferente, isto é, nem mesmo os ‘traidores’ (ou cobardes) deixam de ser irmãos.

– O que significa lavar os pés uns aos outros? Por quem devemos começar? Não deveria ser por quem nos está mais próximo (família, trabalho, Igreja)? Não deveria ser a esses que conhecemos ou que pensamos conhecer nos defeitos? Nos rituais de ‘5.ª feira’ não andaremos a encenar ‘lava-pés’ para escolhidos e pré-santos? Onde estão os que nos ofendem ou pensamos que tal nos fizeram? Não andaremos a adular-nos uns aos outros em vez de nos servirmos com humildade e em verdade?

= O lava-pés, neste ano jubilar da esperança, deverá ajudar-nos a sair do conforto do ritual já feito para ousarmos viver e testemunhar a novidade de sabermos lavar, hoje, os pés e de os enxugarmos uns aos outros, à semelhança de Jesus.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Discussões sobre calvície

 

Estávamos num debate frente-a-frente entre dois chefes de partidos algo antagónicos na visão ideológica e política quando um deles atirou: se perguntarmos a RR como se resolve o problema da calvície em Portugal, eu tenho a certeza que o RR dirá: baixando um imposto... Ao inquirir o que o outro faria, aquele retorquiu que o adversário (PNS) haveria de defender que a calvície se resolveria com mais um imposto... A troca de galhardetes continuou até terem atingido quinze minutos de ‘ideias’ cada um e ficar tudo igual ao antes disputado.

1. Será que a calvície se resolve com mais um ou menos um imposto? Será que com esse mais ou esse menos não trará calvície a quem seja submetido ao aumento de impostos? Este argumentário é sério ou quiseram introduzir alguma ligueireza nos temas a debater com mais ou menos cabelo? Não será que a seriedade das coisas se pode medir pelos assuntos adventícios aduzidos ao debate? Distrações servem de fait-divers para não dizer o que é preciso...

2. Os tempos não correm de feição para quem pretenda tomar as rédeas do país. Mais as coisas de fora do que as intestinas importa analisar com verdade e serenidade. Nunca por nunca haverá eleições cruciais ou que depois delas seja o fim... só se for de algum dirigente derrotado. Com efeito, cada eleição - seja qual for a instância ou a abrangência (nacional, regional, autárquica ou presidencial) - está inserida no seu tempo histórico e psicológico. As últimas são sempre as mais importantes, embora as devamos, posteriormente, analisar à luz de outras em contextos, por certo, diversos e também significativos.
Como seria fulcral que se deixasse de fulanizar as discussões e se centrassem os intervenientes nas ideias e nas propostas bem avalizadas para o futuro. Por vezes criam-se certas cortinas de fumo que só servem de distração do essencial, levando a perder tempo e a saturar quem quer ser esclarecido para uma escolha consciente e informada.

3. As máquinas de propaganda - rotuladas de gabinetes de imagem ou de comunicação social - instruem (dão indicações e ordens) aos candidatos, fazendo com que mais parece um jogo de marionetas do que uma ação humana com pessoas tiradas de entre o povo normal. Com os recentes debates isso é mais manifesto e quase se pode aferir de um para outro dos combates...

4. Já lá vai o tempo dos comícios e manifestações ou de caravanas automóveis percorrendo as ruas e as estradas…ou mesmo as arruadas. Hoje a matéria de comunicação está sob a alçada dos meios de internet. Os métodos de fazer campanha mudaram e as circunstâncias muito mais, mas os objetivos persistem: angariar votos para que o projeto apresentado seja vencedor e possa haver solução para os problemas de cada época...

5. Aquando da convocação das próximas eleições legislativas, o bispo de Setúbal fez publicar uma nota pastoral da qual vamos extrair breves excertos.
«Desejo apelar à participação política de todos vós, nas várias eleições que se avizinham: Legislativas, Autárquicas e Presidenciais. (...) Mais que slogans vazios e ocos, procuremos escutar e dialogar com quem fale dos problemas reais e das respetivas soluções, como é o caso da saúde, da educação ou da habitação; os pensionistas, os estudantes, os jovens, os trabalhadores, os precários, os migrantes, a preocupação com a sustentabilidade da segurança social, com a mobilidade, a ecologia integral. Escutar aqueles que, com verdade, não escondem a dificuldade do caminho e do processo e não embarcam em soluções mágicas, fantasiosas e imediatas. Na verdade, escutar aqueles para quem a pessoa, cada pessoa, é o centro e a razão primeira do tão nobre exercício da política».
Lendo e refletindo sobre estas palavras-escritas de D. Américo Aguiar assim consigamos esclarecer-nos, decidir e votar. A abstenção é nitidamente a arma dos cobardes, sempre!



António Sílvio Couto

terça-feira, 8 de abril de 2025

Povo cigano – identidade, cultura e direitos

 


A 8 de abril, celebra-se o ‘Dia internacional dos ciganos’ como oportunidade para a reflexão sobre a identidade, a cultura e os direitos das comunidades ciganas.

Segundo a mensagem, publicada pela obra nacional da pastoral dos ciganos «esta data é também uma ocasião para reconhecer e valorizar a história, a cultura e a identidade do povo cigano, parte integrante da riqueza e diversidade da nossa sociedade. Ao mesmo tempo, é essencial lembrar os desafios persistentes que muitas pessoas ciganas ainda enfrentam no acesso a direitos fundamentais como a educação, a saúde, a habitação e o emprego».

Eis as linhas principais que esta obra católica de trabalho com os ciganos, em Portugal, propõe:

* Promover a igualdade de oportunidades na educação é garantir que todas as crianças e jovens, independentemente da sua origem, possam sonhar, aprender e construir o seu futuro em condições de igualdade.

* Assegurar o acesso equitativo à saúde é um imperativo de justiça social, que exige o combate às barreiras, aos preconceitos e às discriminações.

* Garantir condições dignas de habitação é respeitar o direito de todas as famílias a viverem com segurança, conforto e estabilidade.

* Fomentar o acesso ao emprego é essencial para promover a inclusão, a autonomia e o desenvolvimento sustentável das comunidades ciganas.

= Embora haja uma dita ‘Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas’ dá a impressão – pelas palavras escritas pelo diretor da obra católica – parece que se verifica algum atraso na renovação e implementação dessa estratégia no terreno… «A Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas deve representar um esforço nacional concertado para garantir às pessoas ciganas o acesso equitativo aos direitos fundamentais. Contudo, a sua eficácia depende do envolvimento de todos: instituições, sociedade civil, comunidades locais e cada um de nós».

= Agora que estamos em tempo de ‘campanha eleitoral’ seria bom que os partidos e os políticos de todas as ideologias dissessem o que pensam sobre esta etnia, sem rodeios nem preconceitos, antes de mais, se for o caso, como cidadãos nacionais e europeus, com direitos e obrigações, sem guetos nem favelas, mas integrados na sociedade e nas populações com normalidade. Os itens supra citados – educação, saúde, habitação ou emprego – deveriam fazer parte de todas as propostas eleitorais, tornando, deste modo, os ciganos, pessoas que merecem o nosso respeito e que devem respeitar os seus concidadãos.

= Quais são ou podem ser os contributos da Igreja católica para a melhor inserção do povo cigano na sociedade? Que tem sido feito já para que isso aconteça na normalidade da cidadania e na eclesialidade? O pouco que pode ter sido feito tem sido valorizado pela sociedade política e as suas implicações básicas?

Citamos, novamente, um excerto da mensagem do responsável da ‘pastoral nacional dos ciganos’: «Em plena caminhada sinodal da Igreja [católica] e no contexto do Jubileu da Esperança, este dia convida-nos a olhar com mais atenção e responsabilidade para as comunidades ciganas, tantas vezes colocadas nas margens da sociedade. O Jubileu é tempo de renovação espiritual, de reconciliação e de compromisso com os mais esquecidos. É também um apelo à construção de pontes e à abertura do coração a todos, sem exceção. Que continuemos a caminhar juntos, com espírito de diálogo, abertura e confiança no futuro».

= Todos somos chamados a fazer a nossa parte. Assim o vivamos com responsabilidade e verdade!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Morrem sós na cidade

 

Os números estão publicitados e não enganam: de acordo com os dados fornecidos pela força policial, presente nas cidades e em vilas de maior dimensão, em 2022 morreram sozinhas em casa 258 pessoas com mais de 65 anos, em 2023 outras 237 e em 2024 mais 262, num total de 757... do conjunto de mortes, 60% (455) eram de homens e 40% (302) de mulheres. Por seu turno, a GNR (força de segurança pública fora das cidades) sinalizou entre um de outubro e 15 de novembro, do ano passado, 42.873 idosos que viviam sozinhos ou isolados, ou em situação de vulnerabilidade, no âmbito da Operação Censos 2024. Os distritos de Vila Real (5.153), Guarda (5.606), Faro (3.496), Bragança (3.367) e Viseu (3.325) foram os distritos nos quais mais idosos foram sinalizados.

1. Colocados estes dados à consideração podemos interrogar-nos: quais as causas deste isolamento dos mais velhos? Tem sido pensada alguma solução para atenuar este tema ou andamos a entreter-nos com placebos e não enfrentamos as questões a sério? Mesmo que os dados nos apontem para uma litoralização populacional, o que explica a solidão (e morte) nas cidades? Serão esses idosos parte da manipulação dos mais novos sobre os mais velhos, catando-lhes a reforma e deixando-os ao abandono no intervalo? Não estaremos a semear aquilo que havemos de colher, mais depressa do que tarde?

2. Nos livros de leitura da escola primária sob o regime anterior lia-se esta velha fábula do ‘levar o pai ao monte’, situada na região do Alto Minho. Adaptando a estória à linguagem, eis um resumo:

Em tempos era costume nalgumas terras da serra do Soajo levarem os filhos os pais velhos, que já não podiam trabalhar, para um monte e deixarem-nos lá morrer à míngua. Ora um rapaz, seguindo aquele costume, levou o pai às costas, pô-lo no monte e deu-lhe uma manta para ele se resguardar do frio até morrer e ainda uma broa de pão para se alimentar. O velho disse, então, ao filho: tens por acaso uma faca contigo?
Tenho, sim, senhor, respondeu o filho, e para que a quer? Para que cortes ao meio esta manta que me estás a dar… Guarda uma metade para ti para quando o teu filho te trouxer para este lugar. O filho ficou pensativo e tomando de volta o pai às costas, trouxe-o para casa, fazendo, assim, com que esse desumano costume desaparecesse…

Nos livros moralistas daquela época se referia o quarto mandamento da Lei de Deus na referência ao honrar pai e mãe e outros legítimos superiores…

3. Nem com o crescimento da longevidade se percebe a mudança de mentalidade – no sentido etimológico do termo: ‘ser ou estado da mente’ – de tantos que propõem regras e medidas de acolhimento, de defesa e de cuidado para com os mais velhos… como se eles, a continuarem as condições de saúde e de segurança, não venham a ter também a categoria de ‘velhos’… na idade.

Segundo o resultado dos ‘Censos/2021’, Portugal tem 2.424.122 pessoas com 65 anos ou mais (23,4%) e 1.331.396 com menos de 15 anos (12,9%). Há 5.500.951 pessoas com idades entre os 25 e os 64 anos (53,2% do total da população) e 1.088.333 com idades entre os 15 e os 24 anos (10,5%).

4. Apesar destes dados sociais algo reveladores daquilo que somos e de quanto nos espera, não vemos por parte dos partidos políticos – mesmo nas propostas para as próximas eleições – grandes inovações para com os idosos no após-tempo-da-reforma. Onde estão as sugestões para que haja condições de cuidado em casa ou em lares? Teremos de estar exclusivamente sob a condução da iniciativa privada, quando muitos desses idosos se gastaram em serviço público? Por que há tanta relutância em conciliar mais abertamente as iniciativas da ‘economia social’ com os investimentos estatais? Não estaremos ainda sob uma alçada estatal para quem as pessoas não sejam o melhor do património, mas as coisas materiais de antanho, por muito valorizadas que pretendam ser? Urge, por isso, uma mudança de mentalidade, já!



António Sílvio Couto

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Quando (regularidade) me devo confessar?

Por ocasião deste tempo da Quaresma podem (ou devem) surgir questões sobre este tema da ‘confissão’, não só no sentido estrito como na dimensão mais ampla e significativa da vivência do sacramento da Penitência.

Num tempo em que percebemos um certo ‘descrédito’ ou menosprezo deste sacramento da Penitência e Reconciliação parece ser oportuno ir às raízes das questões (depois da vivência de outros tempos), sem subterfúgios nem desculpas mais ou menos consistentes.

Nos tempos mais recentes este sacramento foi ‘atacado’ de diversas formas, criando preconceitos, senão mesmo obstáculos à sua vivência de simplicidade e de compromisso em conversão. As questões derivadas dos processos de ‘abuso sexual’ geraram engulhos um tanto difíceis de ultrapassar, sobretudo por parte de quem tenha menos boas (ou mesmo más) experiências. No entanto, isso não pode servir de labéu para com todo o conjunto de graça de Deus que faz em nós a celebração do perdão.

Há décadas que se dizia: por cada confessionário que se fechava abriam vários consultórios de psicólogos ou de psiquiatras. Hoje tal realidade é ainda mais agravada e pode querer manifestar que o dom gratuito do sacramento do Perdão (envolvendo a escuta e a aceitação da absolvição divina) é, por vezes, negligenciado pelos crentes e, sobretudo, pelos católicos praticantes.

= Resumindo as etapas da celebração do sacramento da Penitência e Reconciliação naquilo que se refere aos atos do penitente. «A penitência leva o pecador a tudo suportar de bom grado: no coração, a contrição; na boca, a confissão; nas obras, toda a humildade e frutuosa satisfação» (Catecismo da Igreja Católica n.º 1450).

= Fixemos a atenção naquilo que à parte da confissão se refere:

- A confissão (a acusação) dos pecados, mesmo de um ponto de vista simplesmente humano, liberta-nos e facilita a nossa reconciliação com os outros. Pela confissão, o homem encara de frente os pecados de que se tornou culpado; assume a sua responsabilidade e, desse modo, abre-se de novo a Deus e à comunhão da Igreja, para tornar possível um futuro diferente (CIC 1455).

- A confissão ao sacerdote constitui uma parte essencial do sacramento da Penitência: «Os penitentes devem, na confissão, enumerar todos os pecados mortais de que têm consciência, após se terem seriamente examinado, mesmo que tais pecados sejam secretíssimos e tenham sido cometidos apenas contra os dois últimos preceitos do Decálogo; porque, por vezes, estes pecados ferem mais gravemente a alma e são mais perigosos que os cometidos à vista de todos» (CIC 1456).

- Segundo o mandamento da Igreja, «todo o fiel que tenha atingido a idade da discrição, está obrigado a confessar fielmente os pecados graves, ao menos uma vez ao ano». Aquele que tem consciência de haver cometido um pecado mortal, não deve receber a sagrada Comunhão, mesmo que tenha uma grande contrição, sem ter previamente recebido a absolvição sacramental; a não ser que tenha um motivo grave para comungar e não lhe seja possível encontrar-se com um confessor. As crianças devem aceder ao sacramento da Penitência antes de receberem pela primeira vez a Sagrada Comunhão (CIC 1457).

- Sem ser estritamente necessária, a confissão das faltas quotidianas (pecados veniais) é contudo vivamente recomendada pela Igreja. Com efeito, a confissão regular dos nossos pecados veniais ajuda-nos a formar a nossa consciência, a lutar contra as más inclinações, a deixarmo-nos curar por Cristo, a progredir na vida do Espírito. Recebendo com maior frequência, neste sacramento, o dom da misericórdia do Pai, somos levados a ser misericordiosos como Ele (CIC 1458).

= Perante estas orientações da doutrina da Igreja católica precisamos de refletir sobre a vivência de cada um de nós deste sacramento. Vivo-o com regularidade? Sinto nele libertação e caminho de paz? Aprecio Deus misericordioso e a Igreja mãe de compaixão, quando vivo este sacramento?



António Sílvio Couto

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Imbecis à solta…

 


Decorridos vinte e cinco anos sobre a primeira edição do ‘BB’ somos confrontados com dúzias e dúzias de imbecis lançados ao conhecimento público, sem contarmos com outros tantos programas afins que foram promovendo muitos mais imbecilizados sem rota nem designação. Efetivamente, alguns canais televisivos foram pioneiros em fazer de desconhecidos ‘figuras’ da vida social, ao menos dentro de uma certa bolha mais ou menos fútil e acrítica. À média de vinte concorrentes por programa, já foram lançados pelo BB cerca de quinhentos figurões, a maior parte do anonimato para a ribalta…

1. Se atendermos a outros pseudo-programas de entretenimento no mesmo canal quase um milhar de pretendentes a desconhecidos, tornaram-se uma espécie de imbecis à procura de fama e da captação de algum dinheiro para viverem na preguiça como profissão. Com efeito, o prémio do programa atual ascende a cem mil euros, fascinando os mais incautos e/ou pretendentes a serem ‘heróis’ por uns breves segundos. Por seu turno, os apresentadores – têm sido figuras da estação em causa – enquadram-se perfeitamente na futilidade do programa, desde longa data.

2. O que faz correr tanta gente para este tipo de programas? Se no princípio se poderia justificar a ignorância sobre o modelo, agora percebe-se um tanto melhor por onde andam os critérios, os valores e mesmo a moral-ética. Por que expõem as pessoas a sua vida, por um punhado de euros ou por precisarem de sair da turba, destacando-se pelas piores razões? De facto, muitas das pessoas que concorreram ao BB e sequazes deixaram de ter vida privada, mesmo pelas causas mais banais e quase ridículas. As várias tentativas de explorar o escândalo – mesmo ou essencialmente no âmbito sexual – foram notadas, com emparelhamentos e casórios a posteriori. Poucos vingaram com honestidade, simplicidade e verdade…

3. Estes vinte e cinco anos da nossa História foram assinalados com muitas mudanças, acompanhadas com a difusão de certos meios de intromissão na vida de todos e acerca de tudo: as ditas redes sociais, com os pretensos influencers e adstritos, as campanhas de denúncia anónima em quase todos os campos da ‘nossa’ vida social e privada, a banalização do relacionamento entre as pessoas (desde o mais sério ao menos comprometedor), a saída do armário de certos comportamentos (os programas foram disso reflexo contencioso), as conflitualidades rácicas e de xenofobia, a exaltação do eu sobre o nós (como consequência da crise do covid-19), a polarização ideológica entre os extremos…foram alguns dos fatores de mudança e, na maior parte dos casos, de confusão e até de convulsão.

4. O equilíbrio entre a vida privada e a exposição às questões públicas sempre foi algo sensível e nem sempre de boa gestão. Que dizer e/ou mostrar? Como dar a conhecer e não permitir a invasão da privacidade? Qual a barreira entre o resguardo da vida privada e a aceitação da exposição pública? Onde está o bom senso e a vulgaridade? Não andaremos a substimar o que é específico para embarcar naquilo que parece excecional? Na confluência entre o que se pode mostrar e o que se deve poder ver, não andaremos a inverter as prioridades mais simples e básicas?

5. Mesmo que pareça um tema algo anacrónico para alguns, o pudor deve ser cultivado, vivido e incentivado com responsabilidade mínima e suficiente. Com se define, então, o pudor?

«O pudor protege o mistério da pessoa e do seu amor. Convida à paciência e à moderação na relação amorosa e exige que se cumpram as condições do dom e do compromisso definitivo do homem e da mulher entre si. O pudor é modéstia. Inspira a escolha do vestuário, mantém o silêncio ou o recato onde se adivinha o perigo duma curiosidade malsã. O pudor é discrição» (Catecismo da Igreja Católica n.º 2522).

6. Todas estas questões não serão reflexo da falta de educação e de vivência do correto sentido do pudor?





António Sílvio Couto

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domingo, 30 de março de 2025

Kit de emergência europeu

 

Num conjunto de diretivas apresentado, em Bruxelas, por estes dias, a Comissão Europeia propõe trinta ações-chave para os governos e os cidadãos da União Europeia estarem preparados para enfrentar eventuais guerras armadas, ciberataques, pandemias e os efeitos extremos da crise climática.

Entre as orientações da "Estratégia de preparação da União" conta-se a proposta de que cada agregado familiar disponha de um kit com água potável (seis garrafas por pessoa), alimentos não perecíveis (como conservas em lata, arroz e massa), lanternas e pilhas; rádio analógico a pilhas; e um kit completo de primeiros socorros... para aguentar 72 horas sem ajuda externa no caso de “incidentes e crises intersetoriais de grande escala, incluindo a possibilidade de agressão armada, que afetem um ou mais Estados-membros”.

= Para alguns entendidos este conjunto de orientações pareceu algo alarmista, enquanto outros, ainda digerindo a surpresa, se foram perguntando sobre o significado mais abrangente destas medidas. Nas dezassete páginas da ‘Estratégia’ consideram-se como fatores agravantes: as tensões geopolíticas, no contexto de uma nova corrida ao rearmamento face à Rússia e a aparente aproximação dos EUA ao Kremlin...

= Esta nova forma de entender as coisas e de as enfrentar, traz-nos à lembrança dos cerca de oitenta anos em que a Europa no seu todo, com algumas exceções viveu em paz. Como se explica esta ‘longa paz’ na Europa?
De facto, para os europeus, a guerra tem sido tema recorrente da sua existência coletiva. A paz, essa, ao invés, tem sido infelizmente a verdadeira exceção. A Europa do após-Segunda Guerra Mundial apresenta dois grandes momentos: de 1945-1989, procurou-se construir a paz... sem esquecer a dira ‘guerra fria’ entre o Ocidente o Leste da Europa; de 1989-2022, aproveitou-se para viver e desfrutar da paz.
Bruscamente, em 2022, a Europa acordou novamente para o fim dessa paz que, afinal, era tudo menos perpétua, iniciando-se um momento intranquilo em que nos encontramos. Com exceção de alguns conflitos localizados que resultaram da independência de novos Estados após o colapso da União Soviética, nestas quase oito décadas não houve guerra na Europa.
Em 2012, a União Europeia recebeu mesmo o Prémio Nobel da Paz por uma decisão unânime do Comité Norueguês do Nobel., pois durante mais de seis décadas contribuiu para o avanço da paz e da reconciliação, da democracia e dos direitos humanos na Europa. Os principais fatores citados como razões para esta ‘longa paz’ incluíram o efeito dissuasor das armas nucleares, os incentivos económicos à cooperação causados pela globalização e pelo comércio internacional, o aumento mundial do número de democracias, os esforços do Banco Mundial na redução da pobreza, e os efeitos do empoderamento das mulheres e da manutenção da paz pelas Nações Unidas.
No entanto, nenhum fator é uma explicação suficiente por si só e, portanto, são prováveis fatores adicionais ou combinados. Outras explicações propostas incluíram a proliferação do reconhecimento dos direitos humanos, o aumento da educação e da qualidade de vida, mudanças na forma como as pessoas encaram os conflitos (como a presunção de que as guerras de agressão são injustificadas), o sucesso da ação não violenta, e fatores demográficos, como a redução das taxas de natalidade.

= Chegados a esta etapa da História da Humanidade, vemos, na Europa, sinais algo preocupantes para o nosso futuro coletivo: sem dramatismo nem despreocupação, precisamos de saber interpretar ‘os sinais dos tempos’ - essa feliz expressão do Concílio Vaticano II, na Constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, n.º 4 - por entre as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, como os de ontem e, possivelmente, os de amanhã.
Não será que este kit revela mais do que seria desejável?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 27 de março de 2025

Militantes dos partidos políticos portugueses

 

Agora que caminhamos mais uma vez para eleições – estas legislativas são as décimas oitavas desde abril de 1975 – pode ser útil sabermos qual o número de militantes dos partidos políticos portugueses. Indicamos a cifra de cada um e, entre parêntesis, o ano mais ou menos atualizado destes dados: PS – 74.073 (2021); PSD – 102.613 (2014); CDS – 33.490 (2014); PCP – 60.484 (2012); BE – 9.264 (2014); CH – 40.000 (2021); PAN – 2.724 (2023); Livre – 1.900 (2024); IL – 7.258 (2024)...

1. No quadro destes dados podemos perceber que há partidos mais antigos, considerados como os fundadores da ‘democracia’ e outros mais recentes, quase sempre dissidentes ideológicos daqueles matriciais. Foi sobretudo já neste século XXI que emergiram algumas forças para cativarem alguns dos desiludidos e/ou necessitados do seu protagonismo: alguns tanto cresceram como minguaram ao sabor dos intentos e das circunstâncias sócio-económicas. Num pretenso enquadramento ideológico, poderemos considerar estes partidos entre direita e esquerda, numa alusão ao papel do Estado e da economia... subdividindo-os ainda segundo ‘famílias’ no espetro europeu em sete agremiações, a saber: Partido Popular Europeu, Aliança de socialistas e progressistas, liberais, verdes, conservadores e reformistas, identidade e democracia (extrema direita) e esquerda unitária. Os partidos políticos portugueses, no contexto europeu, encaixam-se nestas subdivisões e tentam sobressair…

2. Para além desta organização ideológica e partidária mais visível há ainda os simpatizantes e os votantes, que ciclicamente exprimem a sua opinião, quando chamados a exercê-la pelo voto. Temos, então, que muitos daqueles que suportam os partidos com a sua militância são os fazedores das tendências, das subjugações pretenciosas e, duma forma especial, conseguem auferir para os partidos a tal subvenção, isto é, quanto recebe cada partido pelo voto que lhe foi dado nas eleições.

3. O que é e como funciona a subvenção? A subvenção pública do Estado aos partidos é um valor pago anualmente, garantido aos partidos que tiveram mais de 50 mil votos para financiar a atividade política e partidária. Este montante proporcional aos números de votantes é pago mesmo que os partidos em questão não tenham elegido deputados para o Parlamento… Cada voto vale 3,87 euros! A esta subvenção deve acrescentar-se também uma outra que consta da comparticipação nas despesas, ou parte das despesas, que cada partido teve com a campanha eleitoral nos últimos seis meses anteriores às legislativas… como vê os gastos são muitos, embora os proveitos deixem muitas vezes algo a desejar!

4. Atendendo a que é através das eleições e concretamente com a colaboração dos partidos políticos que se forma a vontade popular, pelo voto, e sabendo da diminuição da qualidade daqueles/as que se apresentam ao sufrágio, será urgente que se faça uma reflexão sobre o modo de exercer a votação e ainda que se encontrem formas de não desperdiçar votos, atrofiando a representatividade das populações e das suas opções mais diversas. Desde logo é importante introduzir o voto obrigatório, pois não pode ser tratado da mesma forma quem se pronuncia ou quem não vota. A estes deveriam ser aplicadas medidas que coartem, progressivamente, algumas das regalias sociais e/ou de certos ‘direitos’ de índole cívica. Quanto ao não-desperdício dos votos será de encontrar círculos uninominais nacionais que vinculem eleitos e eleitores…

5. Mesmo que tenham vegetado, nos tempos mais recentes, por desilusão para com os partidos alguns dos pretensos independentes – como dissidentes ou com outras intenções mais camufladas – devemos criar condições para que a participação na vida política seja mais do que um direito, mas uma obrigação ético-moral. Saber estar e esclarecer-se é algo que não pode ser deixado para quem se faça passar por desinteressado, pois as decisões dos políticos (razoáveis ou péssimos) afetam tudo e todos.

6. Não será preciso ser militante de qualquer partido para ter uma escolha clara, esclarecida e amadurecida.



António Sílvio Couto

terça-feira, 25 de março de 2025

Se queres que te levem a sério, leva a sério os outros

Apesar de tudo dá a impressão que há muitas pessoas que tentam levar a vida mais ou menos a brincar e, por isso, correm o risco de não serem levadas a sério porque também não levam os outros, suficientemente, a sério. Isto não é nem de longe um convite à sisudez de vida, mas antes uma proposta a que haja alguma reciprocidade entre todos: se queres que te levem a sério, leva também tudo os outros a sério, com credibilidade, com ponderação e dando-lhes crédito para que to deem a ti.

1. Em diversos campos de atividade humana, como por exemplo na disputa político-partidária, podemos encontrar quem viva com ligeireza e sem o mínimo de parecer que leva os ouros a sério: quantas vezes, o que vale para uns não tem idêntica valorização para outros, embora a pauta de avaliação seja a mesma. As recentes eleições regionais na Madeira, para uns não significam o mesmo que para outros, só porque os resultados lhes foram desfavoráveis, segundo as expetativas… por seu turno, quem venceu corre o risco de extrapolar desejos para outras refregas ainda não realizadas…

2. No ramo da atividade económica – tanto empresarial como comercial – nalgumas situações deixa um tanto a desejar a seriedade como certos intervenientes ligam com os concorrentes. Por vezes, será preciso brilhar pela qualidade para que todos venham a ganhar e não se gere descrédito quando resvala para a acreditação dos produtos e dos custos. Nem sempre parece ser sério o nível de alguns dos nossos exportadores e isso poderá valer a quebra nas vendas e na afirmação de todos.

3. Estamos num mundo globalizado e com excesso de informação acerca de tudo e para com todos, por isso, bastará um mero deslize de poucos para que se crie a desacreditação de todos. Dá a impressão de que, nunca como agora, uma árvore de má (ou menos boa) qualidade infeta toda a floresta. Bastará que um determinado profissional seja incompetente ou que não seja tão sério como era expetável que fosse para todos dessa mesma classe (profissional ou social) sejam nivelados pelo transgressor… professores, advogados, engenheiros, padres, autarcas, políticos, futebolistas… se um não corresponder ao que se deseja, todos são, desgraçadamente, iguais no erro, mesmo que nada disso os tenha atingido!

4. Mais uma vez e neste contexto me vem à lembrança a ‘alegoria’ das árvores que quiseram escolher um rei. Eis o texto:

«As árvores puseram-se a caminho para ungirem um rei para si próprias. Disseram, então, à oliveira: 'Reina sobre nós.' Disse-lhes a oliveira: 'Irei eu renunciar ao meu óleo, com que se honram os deuses e os homens, para me agitar por cima das árvores?' As árvores disseram, depois, à figueira: 'Vem tu, então, reinar sobre nós.' Disse-lhes a figueira: 'Irei eu renunciar à minha doçura e aos meus bons frutos, para me agitar sobre as árvores?' Disseram, então, as árvores à videira: 'Vem tu reinar sobre nós.' Disse-lhes a videira: 'Irei eu renunciar ao meu mosto, que alegra os deuses e os homens, para me agitar sobre as árvores?' Então, todas as árvores disseram ao espinheiro: 'Vem tu, reina tu sobre nós.' Disse o espinheiro às árvores: 'Se é de boa mente que me ungis rei sobre vós, vinde, abrigai-vos à minha sombra; mas, se não é assim, sairá do espinheiro um fogo que há-de devorar os cedros do Líbano!'» (Jz 9,8-15).

5. Quantos pequenos ‘reizinhos’ deambulam pelas nossas ruas, considerando os outros menos do que eles. Quantos desses ‘reizinhos’ ascendem ao poder e ai de quem os contrarie ou hostilize? Quantos desses ‘reizinhos’ se melindram porque os outros não os adulam nem consideram importantes como eles se acham. Quantos desses ‘reizinhos’ nunca deverão poder mandar, pois serão déspotas sem compaixão nem arrependimento…

6. Considero os outros acima ou abaixo de mim? Mas eu não sou o fiel da balança, nunca!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 19 de março de 2025

Aberrações de Trump

 

As imagens transmitidas pela televisão horrorizam qualquer ser humano mais básico: pessoas a serem transportadas pior do que gado para aviões, aplicando-lhes processos de vexame ao raparem-lhes o cabelo, amarrados com correntes, vestidos em uniforme e empurrados de modo abjeto. Por muito pouco que se possa concordar com o atual presidente dos EUA estas imagens corroem a indignidade, são mesmo aberrações da condição humana mais elementar. Independentemente do historial daquelas pessoas – dizem que podem ser criminosos perigosos, mas também meros imigrantes ilegais – nada justifica tal tratamento tão desumano.

1. Uns tentam fazer crer que aquilo é para consumo interno e fazendo parte do plano pré-eleitoral de expulsão dos milhões de imigrantes (ditos) ilegais. Outros consideram exagerado por parte de quem difunde tais castigos e consideram-nos atropelos à boa convivência social dos simpatizantes do agora ‘senhor da américa’. Outros ainda como que fazem entender a forma como aquele eleito presidente quer tratar tudo e todos, desde que lhe façam frente ou discordem dos seus intentos… Dá a impressão que está a crescer a ilegalidade das expulsões a efetuar, por estes dias, na medida em que se estará a verificar uma execução do processo de pessoas fora da cobertura da justiça, senão mesmo ao arrepio desta.

2. Por muito mau que possa ser um ser humano, não há direito de o aviltar ou ofender ainda mais na sua ferida dignidade. Quando descermos a esse estado de coisas, correremos o risco de confundir os papéis de quem quer cumprir o que prometeu, mas não tem meios nem força moral para o executar. Dá a impressão que se meteu tudo no mesmo saco – ilegais e criminosos, trabalhadores necessários para as tarefas da economia e possíveis marginais… Com tanta sanha persecutória corre-se o risco de cometer barbaridades, aberrações e de fomentar nova criminalidade, agora sob a tutela do estado.

3. Enquanto cristão sinto vergonha de que haja pessoas naquele processo que se afirmem cristãos e alguns se apelidam de católicos praticantes. Desde a primeira hora, o Papa Francisco tem denunciado e contestado aquele método de querer conduzir um país, que, afinal, se alguma coisa é ou significa, foram os mais variados emigrantes que o fizeram e o sustentam. Certas ideias já fizeram muito mal à Humanidade, com milhões de vítimas ao longo do século XX: as duas guerras mundiais, as perseguições coletivistas de pendor marxista, as lutas tribais no continente africano, as guerrilhas latino-americanas… tudo deixou um rasto de morte e de ofensa à dignidade da pessoa humana, tenha a condição ou a configuração que possa apresentar.

4. Lemos num dos evangelhos dominicais desta quaresma (Lc 13,1-9):
«Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há-de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’
Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».
A maior conversão à dignificação da pessoa. A maior urgência está em levarmos a sério os avisos de Deus. O melhor resultado está em sermos, uns para os outros, sinais e presença divinizada em gestos, palavras e atitudes.
De facto, Deus espera de cada um de nós frutos que condigam com as graças, dons, possibilidades e bênçãos recebidos. Será que tenho correspondido a tudo isso que Deus me concedeu? Por que me custa tanto a deixar-me converter? Tenho sabido corresponder àquilo que Deus me dá ou desbarato tudo isso de forma ingrata?


5. Os episódios do outro lado do Atlântico fazem-nos refletir sobre a vulnerabilidade da pessoa humana, tanto de quem governa como de quem é governado: todos somos humanos e merecemos respeito, particularmente quando estamos em situação de fragilidade… e os imigrantes, refugiados e perseguidos são disso claro sinal. Hoje são eles, amanhã podemos ser nós!


António Sílvio Couto

segunda-feira, 17 de março de 2025

Eleições: a melhor saída sem solução?

Na vertigem dos acontecimentos – políticos, sociais e partidários – somos chamados a votar no próximo dia 18 de maio. Resultado da queda do governo, por derrota de uma moção de confiança apresentada pelo mesmo, depois de duas anteriores moções de censura derrotadas consequentemente. Quase todos clamavam por não haver eleições, mas os dados foram sendo afunilados para este resultado, que podem tanto ser uma saída como não trazem nenhuma solução para o país, sobretudo, para os concorrentes…

1. Como consequência da exposição pública da vida privada do chefe do governo, fomos sendo atirados para leituras, manipulações e desenlaces que só podiam cair em desfazer os nós de tantas questiúnculas arregimentadas. Poderá um qualquer cidadão com passado nos seus ‘negócios’ sem que isso possa interferir nas decisões governativas, se um dia for chamado a tal? A vida privada de alguém tem de ser esmiuçada até ao tutano se for melhor sucedido do que os adversários? Não valerá mais viver à sombra da preguiça – onde os subsídios compram quem pouco ou nada produz – do que arriscar em construir algo que dê segurança aos familiares diretos? Criado este precedente certamente muitos arrepiarão caminho em aceitarem ir para a vida pública e, muito em breve, teremos quem não presta e pouco vale nos lugares de comando, dado que serão controlados por outros que não dão a cara…

2. Que jeito tinha continuar a haver um governo em funções, se este estaria em contínua e provocante escrutínio de uma tal ‘comissão parlamentar de inquérito’ (CPI), lançando suspeitas e diatribes sobre quem, embora, governasse, estava a ser controlado por forças exteriores ao seu programa? Deste modo saber e aferir da aceitação dos membros do parlamento era o único caminho sem becos nem vielas! Quase todos queriam que não houvesse eleições – fomos chamados a votar três vezes em menos de dois anos – e a lama de todos contra todos seria a derradeira vivência até que tudo se afundasse.

3. Será que ir a votos significa só um plebiscito ao chefe do governo novamente candidato? Os adversários serão capazes de fazer campanha sem não voltarem ao tema, que, para mal ou para bem, vai ser matéria de juízo na hora da escolha de cada votante? Haverá tempo para criar distanciamento entre o que aconteceu entre meados de fevereiro e meados de março, potenciando quem faça melhor e/ou apresente algo alternativo ao que estava a ser feito, criticado ou proposto?

4. Nesta avalanche de acontecimentos fomos percebendo que a comunicação social – nos seus diversos itens – não é capaz de fazer a sua função sem ser tendenciosa, desrespeitosa para com a dignidade das pessoas e, sobretudo, ideológica sem ideologia. De muitas e variadas formas vemos que as pessoas só valem se tiverem nódoas, senão verdadeiras, ao menos presumidas. Com que facilidade se desonra quem quer que seja e quase nunca se repõe a verdade, quando o que foi motivo de notícia, se confirmou ser mentira (total ou parcial). A pretensa ‘liberdade de informação’ trucida quem não seja da mesma tendência dos promotores das notícias. Ao referir ‘tendência’ se coloca o adjetivo ‘ética’ e logo a conversa caminha para a desconfiança, sobretudo se a dita ’ética’ for ‘republicana’, onde a lei é sagrada, mesmo que tenha sido construída na base da razoável desvalorização da pessoa humana no seu todo.

5. Cada vez mais estamos todos na linha de tiro de quem não seja ou não sirva as mesmas pretensões dos promotores da maioria do pensamento dominante. Os valores e critérios de boa parte da nossa população estão sob o controle de uma visão ‘do-sem-Deus’, pois deste modo se pode dizer tudo e o seu contrário sem entrar em contradição. E o pior de tudo é que os (ditos) cristãos não destoam deste ambiente anódino, agnóstico e consumista. Num tempo de ética à la carte poucas são as vozes que destoam neste deserto de ideias e muito menos são aqueles se pronunciam pela denúncia e no compromisso dos valores humanistas da verdade, da honestidade e da lealdade…



António Sílvio Couto

sexta-feira, 14 de março de 2025

Matraquilhos da política

 

Recordo que uma das reprimendas que nos eram dadas quando jogavamos matraquilhos consistia em não ser permitido rodar os bonecos por forma a tentar marcar golo a grande velocidade… isso podia fraturar algum boneco ou a bola podia espirrar para fora da área de jogo… Nessa época os bonecos eram pintados com as cores dos rivais de Lisboa, depois foi sendo introduzida a hipótese do outro grande do Norte, mas a luta era sempre a mesma: ganhar naquele campo fictício das animosidades arrolhadas…já seria uma vitória, mesmo que pírrica. Daquilo que segui nos debates mais recentes – houve três em menos de um mês – no parlamento fez-me recordar os jogos de matraquilhos, só que estes, hoje, têm nomes e fazem pior figura do que os bonecos…

1. Quando a vida política se reduz a escarafunchar a vida dos intervenientes, algo vai mal nesta sociedade…em colapso. Quando se valoriza quem nada faz em detrimento de quem ousou investir e criar riqueza, algo está apodrecido e já fase avançada…como dizia alguém: já fede! Quando se converte a ação politica numa resfrega de incompetências (pessoais, profissionais e sociais), algo já cheira mal de podre, mesmo que os que lhe mexem pareçam sentir um certo prazer mórbido e pestilento. Quando se orquestra toda uma leitura de factos, partindo de preconceitos, ressabiamentos e interesses pessoais camuflados de boas intenções, já batemos no fundo e vai ser complicado sair de lá sem ficarem manchas para o futuro em todos.

2. Isto e muito mais podemos ver – há quem tente discerner para além da espuma das notícias e dos episódios degradantes – nos tempos mais recentes no nosso país. Só que a doença está a espalhar-se como uma epidemia bem mais grave do que a covid-19… que nos assolou dramaticamente há cerca de cinco anos. Neste como noutros tempos e campos de atividade a ‘paixão’ pode toldar a capacidade de distinguir o essencial do secundário, podendo corer o risco de fazer deste o sujeito daquele: urge ter inteligência capaz de submeter as sensações ao controlo. Seja qual for a atividade em curso precisa de ser muito bem analisada e isto é ação da mente sobre a emotividade…sobretudo de quem tem de decidir em função dos outros, isto é, daqueles a quem deve servir.

3. As posições antagónicas vão dirimir-se em respostas no confronto das eleições já convocadas para 18 de maio e para que não possam continuar a estar centradas nas questiúnculas de caráter, mas nas propostas de solução para o país e não para certas bolhas mediáticas. Mesmo que boa parte dos interessados não quisesse a submissão ao voto popular, esta será a mais adequada forma de ajuizar (julgar, decidir e avançar) tudo e todos. Mesmo que o desenvolvimento das questões pudesse ser outro, seria de muito grave solução ter quem governa a ser ‘queimado em lume brando’ até ser esturricado na grelha dos interesses alheios… É verdade que alguns não mecerecem confiança pela simples razão de que não têm estofo para ultrapassarem o desdém com qualidade minima, tanto atual como futura. Nota-se um verdadeiro deserto de compromisso para além da maledicência e contumaz arrogância. Se eu fosse a um lugar de vendas – eletrodomésticos ou de carros, passando pela aquisição de casa ou pelo investimento das minhas parcas economias – não confiava na argumentação de certos vendedores ou propagandistas de feira… à antiga.

4. Abjuro a proclamação recorrente de que estas são as eleições mais importantes de sempre. Isso seria confinar-se a que, no presente e para o futuro não aprendemos nada, nem sequer com os erros… e são tantos! Este argumento dramático funciona para aqueles que, na maior parte das vezes, aliam ignorância com oportunismo: nada é irreversível. Quem já tenha assistido e vivido outros momentos da nossa história coletiva compreenderá a situação importante, mas nunca tal dramaticidade que seja o fim…Não creio na teoria do retorno, mas há coisas que a ‘teologia da história’ ensina que sempre Deus cuida, assim nos deixemos cuidar e nos submetamos verdadeiramente à sua condução.

5. Com destes matraqulhos em ação ninguém vai cantar vitória!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 13 de março de 2025

Celebrar e viver o ‘sacramento da quaresma’

Por duas vezes, no primeiro domingo da Quaresma, encontramos a expressão ‘sacramento da quaresma’, a primeira na oração coleta: «Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que pelas práticas anuais do sacramento quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e demos testemunho dele com uma vida santa» e a segunda na oração sobre as oblatas próprio desse mesmo primeiro domingo, quando se refere:
«fazei que a nossa vida, Senhor, corresponda à oferta das nossas mãos com a qual damos início à celebração do venerável sacramento da Quaresma». Segundo a terceira edição típica do Missal Romano (2023) algo se pretende realçar nestes dois momentos de início da caminhada quaresmal. Encetemos uma pequena descoberta.

1. Que significa acrescentar à quaresma o termo ‘sacramento’? Será que este sacraliza aquela? Como
podemos e devemos interpretar a vivência da quaresma nesta linguagem de sacramento? Para os menos
esclarecidos teologicamente dizer ‘sacramento da quaresma’ envolve o mesmo entendimento dos sete
sacramentos litúrgico-eclesiais? Qual a relação entre a ‘Igreja sacramento de salvação’ e a quaresma como sacramento? Haverá correlação e complementaridade?

2. Tentemos um percurso bíblico-teológico para esclarecermos o conceito de ‘sacramento’. Desde logo o Catecismo da Igreja católica. «Os sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, pelos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, com os quais são celebrados os sacramentos, significam e realizam as graças próprias de cada sacramento. Eles dão fruto naqueles que os recebem com as disposições requeridas» (n.º 1131). Por seu turno, realça-se que «os sacramentos são «da Igreja», no duplo sentido de que são «por ela» e «para ela». São «pela Igreja», porque ela é o sacramento da ação de Cristo que nela opera, graças à missão do Espírito Santo. E são «para a Igreja», são estes «sacramentos que fazem a Igreja», porque manifestam e comunicam aos homens o mistério da comunhão do Deus-Amor, um em três pessoas» (n.º 1118).

3. Se nestes textos do Catecismo, tendo por referência os Padres da Igreja, como S. Agostinho ou S. Cipriano de Cartago, podemos ver que os termos ‘mistério’ e ‘sacramento’ envolvem a mesma abrangência a Cristo e um traduz do grego para o latim a mesma ‘realidade’ teológica. O Concílio Vaticano II chama à Igreja ‘sacramento de salvação’ (Constituição dogmática ‘Lumen gentium’ sobre o mistério da Igreja, n.º 48 e também na Constituição ‘Sacrosantum Concilium’ sobre a sagrada liturgia, n. os 5 e 26) e faz da mesma Igreja quem atualiza o mistério de Cristo, como sacramento de salvação. Deste modo afirmar a quaresma como sacramento é uma atualização mais próxima ainda (no tempo e no espaço) do mistério de Cristo e do acolhimento, por toda a Igreja e por cada fiel, da salvação de Jesus Cristo.

4. Quais podem ser as implicações de vermos e de vivermos na dinâmica do ‘sacramento da quaresma’? Tenhamos em conta os dois momentos do primeiro domingo da Quaresma em que realçamos esta vertente ‘nova’ da quaresma como ‘sacramento’. Na oração ‘coleta’ considera-se algum nexo entre as práticas anuais da quaresma (esmola, oração e jejum) como meios de alcançar ‘maior compreensão do mistério de Cristo’, Ele que é o sacramento/mistério do Pai pelo Espírito Santo. Tais práticas não ações exteriores, mas devem radicar no interior da pessoa, isto é, no processo contínuo de conversão. Por seu turno, na ‘oração sobre as oblatas’ pretende-se que haja correspondência entre as ofertas (desde logo dos dons para o sacrifício eucarístico) e a vida, isto é, não damos coisas, mas é própria pessoa que se oferece a Deus em Igreja.

5. Sendo a Quaresma um tempo comunitário de renovação da salvação batismal, torna-se importante darmos espaço e ajudarmo-nos em Igreja a dar novo ardor à graça recebida no batismo. Isso se perceberá mais comunitariamente na celebração da vigília pascal, onde toda (na diversidade de vocações, carismas e ministérios) a Igreja e a Igreja toda (nas diversas expressões de fiéis, leigos, religiosos e clérigos)…

António Sílvio Couto

segunda-feira, 10 de março de 2025

Mexericos, murmurações, calhandrices…

 


Dá a impressão que cada terra tem a sua forma de se referir a esse vício nacional: falar – normalmente mal – da vida dos outros. Aquelas palavras, que ouvi em lugares diferentes – mexericos, no contexto ribatejano; murmurações, nas franjas da margem sul; calhandrices – na beira-mar mais piscatória. Mas podemos acrescentar outras palavras e dar-lhes conotação – bisbilhotice, sinónimo de intriga ou mexerico; ‘cabaneirice’ como coscuvilhice – termo do alto Minho; fofoquice – termo provindo do linguajar brasileiro… A riqueza de vocabulário para este fenómeno cada vez mais popular e roça as instâncias da comunicação verbal direta, nas redes sociais e noutros meios de comunicação… onde se fala mais dos outros do que dos próprios.

1. Será um vício nacional esta vontade e quase necessidade de falar da vida alheia? Por quer teremos de falar dos outros, quando nos devíamos preocupar essencialmente connosco mesmos? Em que ‘escola’ aprendemos tal atitude de vida? Será que não é na família onde aprendemos e exercitamos esta mazela nacional? Quem educa – escola, Igreja ou outra entidade que ministre conhecimentos e sentido ético – não deveria fazer um pouco mais e até melhor do aquilo que se vê, sente e perceciona?

2. Mesmo em surdina o ambiente que se cria com falar dos outros é muito mais do que uma forma de estar, já se tornou uma maneira de ser, quase sem nos darmos conta: engendramos uma espécie de cultura da qual como que fazemos derivar a forma de estarmos e de nos posicionarmos. Àquela recomendação: quem fala dos outros a ti, vai falar de ti aos outros…deveríamos dar mais importância, pois, se cada um de nós não estancar esta onda de má-língua, tornar-se-á insuportável a sociedade em que vivemos, nos movemos e existimos…

3. Houve uma fase da vida pastoral do Papa Francisco em que ele invetivou veementente este vício social de falar nas costas da vida dos outros. Eis uma breve citação da oração de ‘Angelus’ de 10 de setembro de 2023: «Infelizmente a primeira coisa que muitas vezes se cria à volta de quem erra é a coscuvilhice, em que toda a gente fica a saber do erro, com todos os pormenores, exceto a pessoa em questão! Isto não está certo, irmãos e irmãs, isto não agrada a Deus. Não me canso de repetir que a coscuvilhice é uma chaga na vida das pessoas e das comunidades, pois traz divisão, traz sofrimento, traz escândalo, e nunca ajuda a melhorar, nunca ajuda a crescer. Um grande mestre espiritual, São Bernardo, dizia que a curiosidade estéril e as palavras superficiais são os primeiros degraus da escada da soberba, que não eleva, mas abaixa, precipitando o homem na perdição e na ruína (cf. Os graus da humildade e da soberba).

Jesus, porém, ensina-nos a comportarmo-nos de forma diferente. Eis o que ele nos diz hoje: «Se o teu irmão cometer uma falta contra ti, vai e repreende-o a sós» (v. 15). Fala com ele «cara a cara», fala com lealdade, para o ajudar a compreender onde erra. E fá-lo para o seu próprio bem, superando a vergonha e encontrando a verdadeira coragem, que não significa falar mal, mas dizer-lhe as coisas na cara com mansidão e gentileza».

4. De facto, somos pouco sinceros uns para com os outros, pois damos mais ouvidos às coisas negativas dos outros do que às suas qualidades, dons ou mesmo virtudes. Na maior parte dos casos preferimos falar ou difundir o que é negativo dos outros do que aquilo que nos pode ofuscar a sua presença ou até a sua personalidade. Recorrentemente vemos os outros a serem difamados ou mesmo sendo posta em causa na sua honra e calamo-nos cobardemente, permitindo, assim, que se crie um ambiente de mal estar, senão mesmo de maledicência sem recuo. É nesta sociedade doente em que quase nos comprazemos em sobreviver, julgando que isso só acontecerá aos outros, mas, um dia, isso pode acontecer com cada um de nos e aí já não haverá retorno para não sermos engolidos por essa onda malfazeja e fétida.

5. Não será tempo de converter-nos, agora que estamos na Quaresma, deste defeito pessoal e social?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 3 de março de 2025

Será tudo um jogo…mesmo na política?


 De entre os programas televisivos que temos atualmente há um – já com longo historial, mesmo que travestido com vários subtítulos – onde a palavra ‘jogo’ é conjugada em diversos tempos e formas verbais, deixando um rasto de interpretação também para aquilo que vivemos noutros campos de atividade, desde a política (geral ou autárquica) até à confusão internacional e ainda podendo servir de rótulo a alguns conluios religiosos visíveis ou camuflados.

1. Designam o tal programam de ‘jogo’ com regras ditadas desde fora – dizem ser a ‘voz’ – e colocam os intervenientes como peões de um tempo mais menos útil ao entretenimento, sendo descartados quando já não dão audiência ou espremidos até que quase se desumanizem, sem se darem conta. Tudo isto é servido em direto ou em fatias, de quando em vez: uns pretensos comentadores – alguns/as já fizeram idêntico papel de concorrentes – opinam sobre tudo e quase nada, revelam as suas preferências, tendo em conta os interesses menos claros e deixam escapar observações sobre a educação, o juízo de caráter ou mesmo as influências das (ditas) ‘redes sociais’, em certos casos, pagas com campanhas de angariação de fundos para suportarem os seus preferidos na hora da votação… A isto chamam de ‘jogo’ sem rede nem vergonha!

2. Outro tanto temos visto na área da política, desde a da governação do país até às movimentações para as eleições autárquicas (lá para setembro) e as presidenciais (em janeiro do ano que vem)…tudo envolto num jogo que revela quão baixo podemos cair se não estivermos de atalaia, sobre a composição do filme em rodagem. Se no tal programa há quem dite as regras e, se forem desrespeitadas, haverá sanções, no caso da política são os que atropelam os outros – sem educação humana ou cívica, cultural ou instruída – que se consideram vencedores, fazendo descer de tal modo o nível, que, dentro em pouco, não haverá quem aceite fazer parte desta palhaçada, ofensiva para com os que fazem a arte-de-ser-palhaço…no circo.

3. Efetivamente o nosso país tem vindo a tornar-se um grande circo, agora já sem animais amestrados – ou seriam antes selvagens? – mas com uns humanos que fazem umas tropelias sem graça, dando a entender que já pagaram ao público para lhes suportar a desfaçatez, enquanto se entretêm com verborreias sem nexo e usando trejeitos que não surtem efeito na assistência. Dentro de pouco tempo não haverá ‘palhaços’ porque o dinheiro abunda e poucos são os que se prestam para tais papéis. Não será abusivo considerar que o grande circo em funções se situa em Lisboa, sobranceiro ao Tejo e na colina de S. Bento: aí, onde pretendem que tenha sede a ‘casa da democracia’, vemos exibirem-se uns tantos malabaristas sem preparação, fazendo a função de ensaiados nos escombros na má (abjeta, incongruente e inconsequente) política…Ninguém escapa, pois dá a impressão de que, quanto pior foi o espetáculo, mais indignos serão os atores, se é que ainda sobrará quem se preste para essa triste função!

4. O ‘jogo’ da rua revela de onde vimos e para onde vamos. Quem ouse trabalhar – mesmo que investindo as suas economias ou colocando ao serviço dos outros as qualidades geradoras de riqueza – antes de entrar na política corre o risco de ser apelidado de ‘perigo’ para a democracia, pois esta fomenta, alimenta e promove quem viva da exploração do grande patrão, o Estado: este torna-se providência para depois dar a conta-gotas o que lhe interessa na previdência. Esta visão totalitária continua cinquenta depois decorridos sobre a queda do regime salazarento: muitos encontraram os papéis onde estavam anotadas as regras de antanho e que, caldeadas com as leituras de Marx-Lenine-Mao, aprisionam o país a condições terceiro-mundistas básicas. Não é este país que precisamos e, a continuarmos nesta senda, em breve teremos ainda mais incompetentes a governarem-nos, pendurados nos subsídios e reclamando o aumento de salários até colocarem o país na penúria, na bancarrota e na pauda económica da Europa.

5. Parafraseando a frase emblemática de JF Kennedy: não perguntem o que a nação pode fazer por vós, mas o que é que vós podeis (e deveis) fazer pela nação! Será?


António Sílvio Couto

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

‘Roma não paga a traidores’

 


Reza a História, que, em 139 a.C., depois de uma longa guerra contra os romanos, Viriato enviou Audax, Ditalcus e Minurus (que não eram lusitanos) para negociarem os termos de um possível tratado de paz. Mas, tendo estes sido subornados pelos romanos, apunhalaram à traição Viriato enquanto este dormia. Após o crime, dirigiram-se os três a Roma onde pretendiam receber a recompensa prometida. Porém, segundo diz a mesma história, o general romano Servilius Caepio, em vez de pagar o suborno, ordenou a sua execução na praça pública, ficando os corpos expostos com a seguinte inscrição: ”Roma traditoribus non premiae” – Roma não paga a traidores.

1. Ora, vários episódios na nossa história coletiva (mais antiga ou até recente) trazem-me à lembrança esta espécie de axioma – a traição não tem preço! De facto, em diversas áreas vemos emergirem situações que podem configurar o cumprimento daquela frase: na justiça – delação premiada, na troca de clube por outro melhor pago, na mudança de seguimento religioso, na alteração de candidatos, tanto nas listas gerais quanto (e são cada vez mais) se pode captar nas de incidência local e autárquica. Sem pretender entrar nas causas e tão pouco antecipar as consequências destes atos de quase cobardia, traição ou deslealdade, sinto por certos transfugas mais do que pena, antes um certo desdém, pois tendo estado com aqueles de quem eram (ou foram) comparsas, tornam-se adversários, senão inimigos para sempre.

2. Deixo de novo aqui uma referência a uma conversa ecuménica que tem quase trinta anos. Um dia, em Viena, um pastor senior de uma Igreja protestante disse-me: em nós, os protestantes, um pensa de um modo, faz uma Igreja, onde exprime a sua forma de pensar e de ser; outro apresenta outra coisa diferente e faz outra Igreja e por aí adiante... Vós, os católicos, sois muito interessantes – um pensa de uma maneira, faz um movimento; outro pensa de outra forma, faz uma congregação religiosa; outro não se entende com os do seu grupo, cria outra coisa qualquer, onde continua a mandar... e dizeis-vos todos católicos porque dizeis obedecer todos ao mesmo Papa... Vejamos, como católicos, a imagem que damos inconscientemente!

3. Efetivamente, estamos cada vez mais esfacelados, querendo cada um manifestar a diferença, sem se integrar no conjunto com outros, unindo esforços e criando laços que se fortalecem para conseguir conquistas comuns e – no caso de quem está na vida política (no sentido premigénio do termo) – servir aqueles a quem querem atrair para o seu projeto de bem comum. É aqui que sinto repulsa e quase repugnância: os (pretensos) independentes, na sua maioria, não passam de alguém ressabiado, que quer fazer o seu caminho ‘a solo’, quando só brilhava no contexto com outros, nessa tal orquestra mais ou menos afinada a que já pertenceram. Grande parte dos ‘independentes’ – nalguns casos renegando a agremiação a que deram contributo e da qual muito auferiram – deveriam repensar o seu posicionamento, pois, ao dividirem forças e votos, correm o risco de entregar o ‘poder’ àqueles de quem já foram adversários, e criarão cisões irreparáveis no futuro...nem sendo sequer eleitos. De pouco interessa apelar à unidade, quando, quem se separou, dividiu!

4. Os tempos não são de tentativas de exaltação de egos, mas de consertação de forças, pois será nesta união que poderemos todos construir algo melhor e mais consentâneo com as aspirações daqueles a quem querem servir. Até onde irá a capacidade de impor ‘projetos pessoais ou de grupos’ ao resto das populações? Certos afãs de protagonismo não esconderão lóbis subterrâneos ou pouco claros? Que adianta dizer-se democrata, se o objetivo é vingar as suas pretensões nem sempre claras?

5. O futuro se vai encarregar de premiar ou de castigar – verdadeiramente – quem traiu Roma! Por episódios idênticos sabemos as consequências, não seria melhor ter colaborado na renovação do que ter idealizado a irremediável cisão? O tempo esclarecerá as pretensões de todos!



António Sílvio Couto

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Marionetes em jogo ou jogo de marionetes?

 



Muito daquilo que vemos na comunicação social – televisão, redes sociais, aplicações subsidiadas ou compradas, nos programas de entretenimento ou mesmo nos (ditos) noticiários – quase mais parece um jogo de marionetes do que a apresentação – tanto ou quanto real – da vida das pessoas, dos grupos sociais e de interesses, da sociedade em geral e das populações em particular.

1. O sucesso de certos programas em circuito aberto ou em conceção codificada vão-se arrastando quase até à exaustão. Desde o já longínquo ano de 2000 até ao presente desfilaram – quais bonecos articulados sob o comando de uma abstrata ‘voz’ – dez edições do ‘big brother’ com outros programas afins, desde o dos famosos, o VIP, duplo impacto, desafio final… posteriormente apareceram a ‘casa dos segredos’ (treze edições) e outros ainda mais rurais ou pretensamente citadinos…em tentativas de prender público e de conquistar audiências. Muitos anónimos emergiram para famosos e certos famosos entraram na linha dos banais e vulgares. Dos trinta e tal anos da estação que tem exibidos tais programas, três quartos do tempo da sua existência tem sido gasto com tais entretenimentos a puxar para baixo a cultura e a educação do país, nivelando pela mediocridade o espírito da nação. Numa palavra: pelo muito mal que tais programas têm feito à população em geral seria de pedir conta pelas malfeitorias praticadas de forma direta ou indireta…A asneira compensa, mas nem sempre pode ganhar pelo mal feito.

2. Se este panorama da comunicação social revelou o complexo de marionetes em que temos vivido, o que dizer do clima de carnaval que se aproxima. Será que cairá a máscara de quantos se tentam apresentar como paladinos de uma sociedade democrática, mas cujo conceito só por eles mesmos é ratificado? De muitas e variadas formas temos vivido sob a alçada de um regime que promove mais o compadrio do que a competência, que alevanta mais quem nada vale do que aquele que tem mérito, embora este possa colidir com as pretensões dos concorrentes. Com a aproximação do tempo carnavalesco podemos aferir um tanto melhor como o disfarce – feito, assumido ou o pretenso – tem mais culto do que a verdade ou como se torna tão fácil ser manipulado do que pode parecer.

3. Se há caraterística que hoje sobrepuja muita da nossa compreensão é a racionalidade da conduta das pessoas, pois, na maioria dos casos, a emotividade suplanta a valorização da razão, criando-se um ambiente que fervilha de sentimentos, mas que, com alguma dificuldade, explica os comportamentos. Reparemos nas turbas que se deixam fascinar pelas questões do futebol, com que vulgaridade se defendem as questiúnculas clubísticas e quase se fomentam guerras por ninharias sem grande racionalidade. As horas e horas que são gastas à volta do futebol – do jogo ao comentário, da dúvida dos lances às explicações das decisões dos árbitros, das conjeturas sobre o incerto às provocações quanto ao mais assegurado – faz-se todo um ‘espetáculo’ que por ser quase ridículo deixa muito a desejar sobre quem manobra quem ou quais são os diretos intervenientes, se os que vemos, se os que nos manipulam na sombra…

4. O jogo das marionetes faz-nos sentir usados e coloca-nos na instância menos sincera do relacionamento das pessoas umas com as outras. Por muito hábeis que nos sintamos, estamos continuamente sujeitos e múltiplas formas (ou fórmulas) de manipulação: umas vezes tendo como palco aqueles, considerados importantes, com quem nos damos e dos quais podemos usufruir desse conhecimento ou ‘amizade’; noutras situações são os outros que nos podem usar para se promoverem à nossa custa ou ainda quando, não valendo nada e sendo insignificantes, tentamos usar tais conhecimentos para nos vangloriamos perante os incautos. Quem não viu já este aproveitamento algo mesquinho e quase sórdido? Quem não se apercebeu destas manobras no trato das pessoas, na política, na sociedade, na religião, na vida económica, etc.?

5. Com a aproximação das eleições autárquicas veremos muitos destes e mais casos. Saber distinguir o que é verdade da jogada menos correta será arte para se não deixar cair na artimanha... Marionete, não obrigado!

António Sílvio Couto

domingo, 23 de fevereiro de 2025

A preguiça compensa... na nossa mentalidade

 

Os acontecimentos sociopolíticos mais recentes no ‘nosso’ país como que nos deixam a sensação - agora diz-se ‘perceção’ - de que quem não faz nada - nem antes, tão pouco durante e muito menos depois - tem o reconhecimento (tácito ou explícito) de que isso (será preguiça ou capacidade de adaptação?) compensa. Explicando: não ter iniciativa nem investir é muito melhor do que arriscar; viver à sombra dos subsídios é muito mais rentável do que tentar fazer melhor do que o resto (isto é, a maralha e/ou a arraia-miúda); não ser criador de riqueza é muito mais benquisto e reconhecido do que permitir que as pessoas cresçam porque houver quem quisesse sai da banalidade, investindo na valorização dos outros e para os outros...

1. Portugal tem ainda uma mentalidade assaz retrógrada em muitos mais aspetos do que pensamos: quando alguém destoa da multidão anónima e anódina corre o risco de ser trucidado pelos beneficiados do manjar do Estado... lauto nas horas de recompensar os aduladores. Com efeito, o Estado reconhece com prebendas quem contribui para a narcotização mais ou menos generalizada: os medíocres crescem como cogumelos no lamaçal da conformidade com tudo e com todos. Em tempos considerei que esta era a cultura da tartulhocracia - esses fungos que infestam e medram nos pântanos, condicionando o desenvolvimento de outras espécies que não sejam os que menos valem... Assim no espetro político-partidário: há quem nada faça, mas tudo colha sem fazer o que quer que seja para isso... ter sucesso.

2. Não deixa de ser sintomático que os executores do regime - seja qual for o partido - no parlamento se acomodem com tal destreza que os ditos partidos novos têm todos (já conhecidos) e mais alguns dos tiques dos que por deambulam pelos passos perdidos há anos a fio: com que velocidade vemos certos arautos da moralidade a incorrer nos mesmos (ou piores) erros dos que se dizem fundadores da democracia. Dá a impressão que desaguaram na assembleia da república os mais desgraçados da sociedade, permitindo que se exibam sem vergonha nem pejo para o público-eleitor ao ritmo da impunidade mais básica e nefasta.

3. Uma razoável confusão de valores vai emergindo nos espaços que deveriam ter alguma sacralidade humanista porque instruídos e construtores de um respeito essencial à convivência de todos. Mais de meio século decorrido o ambiente que se perceciona na esfera da ‘casa da democracia’ cheira às tropelias relatadas na ‘primeira república’ (entre 1910 e 1926), já só faltando os desafios para os duelos em defesa da honra...com espadachins e capa. Valerá aqui recordar essa troca de argumentos entre dois renomeados políticos dessa época em que um dizia ao outro: o senhor tanto dá uma no cravo como outra na ferradura, ao que o provocado ripostou: pois é, o senhor não está quieto com o pé! Certas argumentações ouvidas, por estes dias, não andaram longe desta troca de palavras de antanho: pena seja que ninguém evoque a defesa da honra para que os casos tenham mais cor e sangue...

4. Incontestavelmente o nível está a decrescer e isso tem repercussão no comportamento mais ou menos generalizado da população: as pessoas não se deixam falar até ao fim, atropelam-se…como veem e ouvem na televisão, no parlamento, nas conversas, que facilmente derivam para discussões, onde as palavras ofendem, agridem e deixam marcas da má-criação generalizada. O ambiente está cada vez pior e os exemplos são pouco abonatórios do que virá…Mais do que de boas intenções precisamos de começar em casa a respeitar-nos, dando espaço e correção uns aos outros…sem lições mas com interesse na valorização positiva do outro.

5. A educação começa desde o berço e será da qualidade deste que poderemos aferir o comportamento dos nossos cidadãos. A rua mostra o que se vive em casa e avaliar pelo que se percebe, como será grande a luta lá por casa!



Antóni Sílvio Couto

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Vinga quem se vinga?

 


Às vezes nota-se mais do que noutros casos essa sensação de vingança, seja pelas palavras, seja pelos atos ou mesmo percorrendo o âmbito dos desejos. Embora possa parecer algo revelador do espírito de Caim, a vingança tem raízes culturais ‘nacionais’ bem mais profundas do que somos capazes de imaginar.

1. Em quantas situações se pode perceber que o sentimento de vingança faz mais furor do que a perceção de harmonia social. As causas de tal ambiente de vingança podem ser várias e muito diversas. Desde logo o ressentimento faz com que sejamos mais propensos para denegrir do que para elogiar ou mesmo de sermos compreensivos uns para com os outros. Recordemos o episódio bíblico dos irmãos Caim e Abel (Gn 4,1-10): Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: «Gerei um homem com o auxílio do Senhor». Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas gorduras. O Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta. Caim ficou muito irritado e andava de rosto abatido. O Senhor disse a Caim: «Porque estás zangado e de rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo». Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: «Vamos ao campo». Porém, logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e matou-o. O Senhor disse a Caim: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» O SENHOR replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim

2. Em quantas situações nós podemos ver o rosto ensimesmado das pessoas…na rua, nas fotos dos jornais, nas reportagens televisivas, nas conversas cara-a-cara…Será que isso denuncia algo idêntico ao que Caim fez a seu irmão Abel? Será que isso expõe os sentimentos de vingança subjacentes em tantas pessoas com quem nos cruzamos? Até que ponto a vingança – como sói dizer-se – se serve fria e não transparece muito mais do que seria desejável? Não estará a nossa sociedade mais alicerçada na vingança do que na compreensão e na tolerância? Esta não serve mais para aquilo que nos interessa do que para o que nos compromete?

3. Ao avaliarmos certos comportamentos sócio-políticos podemos encontrar tantos sinais cainitas – seguidores da mentalidade de Caim, lá o da Bíblia das origens – que espreitam a oportunidade de engendrar a vingança, pensando com isso vingar-se da sua incapacidade de fazer algo em favor dos outros. Com que subtileza vemos a proliferação de casos em que o que mais importa é deixar os escortinados sob a alçada da má-fé popular. Quantos que nada fazem nem investem, mas que escarafuncham a vida alheia até que se possa desacreditar o adversário, na maior parte dos casos consagrado como inimigo…ao menos da incompetência e da mediocridade.

4. Quando um país está assente na teoria da vingança com facilidade poderá colapsar, se nada for feito para suster esta sensação, agora diz-se ‘perceção’. Quem não recorda a ‘lenda’ ainda antes da nossa nacionalidade, quando um grupo adversário do principal lutador lusitano foi traído por alguns daqueles que o conheciam e, ardilosamente, se ofereceram aos romanos para que ele fosse eliminado. Tendo executado a pretensão foram solicitar o pagamento junto dos ocupantes romanos, ao que lhes foi respondido – Roma não paga a traidores! Não será essa costela de vingança que campeia na mentalidade de tantos dos nossos contemporâneos, muitos deles meros fabricantes de má-língua, de mau ambiente e de provocação para com quem faz avançar o país e não se entretém com lamúrias, suspeitas e críticas baratas.

5. Muitos dos que andam a excogitar infrações nunca produziram riqueza nem promovem a meritocracia, antes fomentam o clientelismo, o compadrio, o suborno e, na sua expressão mais subtil, a corrupção. Basta!



António Sílvio Couto

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Na hora da despedida

 


Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Este belíssimo soneto de José Maria Barbosa du Bocage pode ajudar-nos a ler, a interpretar e a colher sinais na hora da despedida do ‘presidente dos presidentes’ do FCPorto.


Não está em causa qualquer julgamento mas antes uma apreciação de uma das figuras mais marcantes – despojados de cor clubística – dos últimos anos na esfera do desporto e do futebol em particular, qual ariete anti-centralismo na visão social, política ou mesmo económica.

Num tempo – e não é só ao nível desportivo no clube que sempre serviu – em que pululam sinais de não-unidade, torna-se importante que olhemos para as qualidades mais do que para os defeitos de quem procura estar ao serviço dos outros.

Sobre a figura em causa apareceram mais os substantivos do que os adjetivos. Estes costumam ser usados para adular, enquanto aqueles descrevem quem quis ou desejou incentivar outros, envolvendo-os num projeto. De facto, depois de JNLPC – na linha daquilo que preconizava o fundador do escutismo – algo mudou e ficou um pouco melhor, senão na forma ao menos no conteúdo, depois dele ter passado por este mundo.

Fique claro: não sou simpatizante nem adepto do clube a que presidiu, mas sinto que homens como este são necessários para tirar o nosso país de um certo cinzentismo acomodado e até de um cristianismo adormecido.

À semelhança do soneto de Bocage é preciso reconhecer os méritos e os erros, sem menosprezar aqueles e tão pouco negligenciar estes: o equilíbrio fará com que todos tenhamos uma missão a cumprir, enquanto estivermos nesta Terra e que saibamos acrescentar um pouco que seja à melhoria dos espaços em que nos movimentamos…

À boa maneira da vida provada pela história, que a memória desta personagem perdure na sociedade portuguesa, colhendo o que ele fez de bem em favor dos outros e que sejam purificadas as agruras próprias de quem é humano, logo frágil, limitado e (porque não) pecador.

RIP.



António Sílvio Couto