Mais de meio século depois da revolução de 25A parece que estamos na estaca zero do conceito e da vivência de algo tão sagrado como a liberdade. As imagens da macrocefalia da capital deixaram-nos um travo amargo sobre o modo como essa tal liberdade é exercida, promovida e celebrada: exercida como algo exaltado pela ditadura do eu; promovida em razão dos que estão do mesmo lado, sem respeito pelos outros; celebrada como se fosse um absoluto sem retorno.
1. Cinquenta e um anos depois sinto vergonha por haver uns tantos deste país que acham que são donos da liberdade, que foram só eles que a recuperaram, que aquilo que não seja da sua cor ou ideologia já não é considerado liberdade. Que tendo sofrido os seus antepassados para que haja liberdade não pode menorizar os que pensam de forma diferente, levando a que quase sejam considerados inimigos da dita liberdade. O monopólio sobre este direito cheira a ditadura tanto pior quanto se reclama de ‘democrata’ em contraste com quem não pensa nem age como eles…
2. Na habilidade da manipulação da liberdade podemos ver este ano de forma clamorosa que uns tantos só consideram estarmos em ambiente de liberdade se se cumprirem certos ritos que mais parecem rituais de uma defuntês anunciada. Disseram que foram suspensos os atos festivos da efeméride. Mas o que foi adiado foi tão-somente um concerto de um cantor a roçar o pimba e a abertura dos palácios à população, dado que a sessão (dita) solene aconteceu, o desfile na avenida foi realizado e as corridas locais de atletismo tiveram lugar. Outros consideram que a música do Zeca foi trocada pelo choradinho do Tony e que isso constituiu uma adulteração ao cerimonial. Se pensarem bem houve um razoável ridículo da festança deste ano… à exceção dos distúrbios e contendas entre fações, reivindicando protagonismo barato e barulhento.
3. Quem tenha menos de cinquenta anos só conhece do 25A aquilo que lhe mostram sob a lente ideológica do exibidor: muitos dos militares operacionais já desapareceram e os que estão vivos já treslem na memória, alguns deles servem de trucida que ainda fumega do tempo revolucionário. Cinco décadas de liberdade são pouco tempo para haver maturidade democrática, mas pior, o mundo mudou e os saudosistas do regime pós-revolucionário não passam de fantasmas, em contrapartida com os riscos da exacerbação dos extremismos populistas, que não olham a meios para atingirem os seus fins, mesmo que arrastando tudo e todos para o lamaçal mais fedorento.
4. Nas comemorações deste do 25A pairou uma figura que, ora ensombrou, ora foi exaltada e porque não dizê-lo manipulada sobre o conceito de liberdade e da forma de a viver. O defunto Papa Francisco foi citado a propósito e despropósito – nalguns casos de forma abjeta e tendenciosa – sobre questões atinentes à liberdade… normalmente sob o sinete mais do social do que do espiritual e na visão holística da pessoa humana. Citamos o Papa: «Esta é uma regra para desmascarar qualquer liberdade egoísta. Aqueles que são tentados a reduzir a liberdade apenas aos próprios gostos. A liberdade guiada pelo amor é a única que liberta os outros e a nós mesmos, que sabe ouvir sem impor, que sabe amar sem forçar, que constrói e não destrói, que não explora os demais para a sua conveniência e que pratica o bem sem procurar o próprio benefício. Em suma, se a liberdade não estiver a serviço do bem, corre o risco de ser estéril e de não dar frutos. Por outro lado, a liberdade animada pelo amor conduz aos pobres, reconhecendo no seu rosto o de Cristo» (audiência de 20.10.2021).
Quem quis instrumentalizar o Papa para as suas ideias, será que alguma vez leu alguma coisa que ele disse? Basta de hipocrisia!
5. A liberdade não pode continuar a ser um mito, mas deve ser um dever que nos faz testemunhar o direito…até para com aqueles que não respeitam a nossa liberdade!
António Sílvio Couto
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