O tema do medo, mesmo que capciosamente, percorre muitas das atitudes do nosso tempo, pois alguns dos fatores de relacionamento entre pessoas e estados estão alicerçados no clima de medo. São múltiplas e quase funestas as consequências do medo na nossa vida, desde as mais simples na dimensão física até às de relação emocional ou mesmo espiritual. Os tempos mais recentes da pandemia fez recrudescer sinais de medo nas pessoas e na sociedade, nas famílias ou nas empresas…quanto ao presente e muito mais relativamente ao futuro.
Não se sabe bem como nem porquê surgiu numa certa teologia (católica e
também protestante) a contabilidade sobre uma expressão muito singular na
Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento: diziam que havia, nos textos
bíblicos, 365 vezes a expressão ‘não temais’, ou ‘não tenhais medo’… Ora,
segundo dados – atendendo às edições da Bíblia católica ou protestantes – mais
assertivos, os resultados serão outros, bem distintos, mas não menos
importantes.
Ora, segundo alguns
estudiosos bíblicos, a palavra ‘temor’ (yare, em hebraico) aparece 305 vezes
nos textos do Antigo e do Novo Testamento. Se a esta palavra acrescentarmos
algumas com afinidade poder-se-á atingir a tal cifra relacionada com os dias do
ano... numa visão de que haveria na Sagrada Escritura uma vez para cada dia
algo a convidar ao não-temer ou ao não-ter medo...
O que encontramos com alguma certeza são expressões que convidam a ‘não ter
medo’ (ou equivalentes) de Deus e do divino. Vejamos, sucintamente, a
lista: ‘não temas’: 58 vezes; ‘não temais’: 35 vezes; ‘não temereis’:
seis vezes; ‘não temerás’: também em seis momentos; ‘não temerei’: em cinco
oportunidades; ‘não temerá’: também em cinco situações; ‘não os temais’: quatro
vezes; ‘não os temas’: em três casos; ‘não tenhais medo’: duas vezes; ‘não
tenhas temor’: outras duas situações; ‘nada temas’: só uma vez... Por estas
contas haverá 127 vezes em que a referência a ‘não ter medo’ ou expressões
afins aparecem na Sagrada Escritura. Embora não seja o tão desejado número de
uma vez para cada dia, é significativo que esta referência à libertação do medo
-- para com Deus, para com os outros (pessoas, coisas ou mesmo forças da
natureza) e até para consigo mesmo -- apareça tantas vezes nos textos sagrados.
Vejamos agora sugestões de libertação do medo nos diversos itens enunciados.
* Não ter medo em relação a Deus:
por várias vezes se faz um desafio a não ter medo de Deus: “Deus é amor, e em
Deus não há medo, receio, temor, antes o perfeito amor lança fora o temor. Deus
é amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele “ (1 Jo 4,16 ). A quem
interessa apresentar um Deus de medo? Porque será que ainda se difunde um Deus
que cria medo e atemoriza (ou aterroriza) as pessoas? Não será devido à falta
da ‘experiência’ de um Deus-amor e do amor de Deus na vida pessoal?
* Sem medo dos outros: que vivemos numa sociedade alicerçada no medo parece não haver dúvida. Com mais facilidade se espalha o medo do que a confiança. Com alguma vulgaridade se noticia o medo do que aquilo que nos faz viver na serenidade, interior e exterior. Não podemos ver nem viver como se os ‘outros’ fossem nossos adversários e muito menos inimigos. Só sobreviveremos, como sociedade, se a confiança for o nosso modo de ser e de estar... Urge exorcizar tantos dos medos que povoam os nossos comportamentos mais básicos. A quem interessa continuar neste clima de medo e de tristeza? A quem será benéfico tanto medo, por vezes, mais psicológico até do que físico? Precisamos de destrancar o nosso coração, tantas vezes desconfiado, medroso e frio...
* Não terei medo de mim mesmo? ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ - diz-se em Lv 19,18. Mas a questão é essa: será que eu me amo a mim mesmo? Não será que, muitas vezes, gosto de mim – nessa subtil expressão de autoestima – mas não me amo, de verdade? Será que aceito a minha história como ela foi ou varro para debaixo do tapete da minha consciência coisas, factos e pessoas com os quais não me interessa confrontar? Saberei perdoar-me a mim mesmo, nos erros, falhas e pecados, que cometi? Não ter medo de si mesmo é conhecer-se – como se dizia no templo grego de Delfos – a si mesmo, com dons, qualidades, defeitos e lacunas de personalidade...
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