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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Libertados do medo

 


O tema do medo, mesmo que capciosamente, percorre muitas das atitudes do nosso tempo, pois alguns dos fatores de relacionamento entre pessoas e estados estão alicerçados no clima de medo. São múltiplas e quase funestas as consequências do medo na nossa vida, desde as mais simples na dimensão física até às de relação emocional ou mesmo espiritual. Os tempos mais recentes da pandemia fez recrudescer sinais de medo nas pessoas e na sociedade, nas famílias ou nas empresas…quanto ao presente e muito mais relativamente ao futuro.

Não se sabe bem como nem porquê surgiu numa certa teologia (católica e também protestante) a contabilidade sobre uma expressão muito singular na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento: diziam que havia, nos textos bíblicos, 365 vezes a expressão ‘não temais’, ou ‘não tenhais medo’… Ora, segundo dados – atendendo às edições da Bíblia católica ou protestantes – mais assertivos, os resultados serão outros, bem distintos, mas não menos importantes. 

Ora, segundo alguns estudiosos bíblicos, a palavra ‘temor’ (yare, em hebraico) aparece 305 vezes nos textos do Antigo e do Novo Testamento. Se a esta palavra acrescentarmos algumas com afinidade poder-se-á atingir a tal cifra relacionada com os dias do ano... numa visão de que haveria na Sagrada Escritura uma vez para cada dia algo a convidar ao não-temer ou ao não-ter medo...
O que encontramos com alguma certeza são expressões que convidam a ‘não ter medo’ (ou equivalentes) de Deus e do divino. Vejamos, sucintamente, a lista:  ‘não temas’: 58 vezes; ‘não temais’: 35 vezes; ‘não temereis’: seis vezes; ‘não temerás’: também em seis momentos; ‘não temerei’: em cinco oportunidades; ‘não temerá’: também em cinco situações; ‘não os temais’: quatro vezes; ‘não os temas’: em três casos; ‘não tenhais medo’: duas vezes; ‘não tenhas temor’: outras duas situações; ‘nada temas’: só uma vez... Por estas contas haverá 127 vezes em que a referência a ‘não ter medo’ ou expressões afins aparecem na Sagrada Escritura. Embora não seja o tão desejado número de uma vez para cada dia, é significativo que esta referência à libertação do medo -- para com Deus, para com os outros (pessoas, coisas ou mesmo forças da natureza) e até para consigo mesmo -- apareça tantas vezes nos textos sagrados.
Vejamos agora sugestões de libertação do medo nos diversos itens enunciados.
* Não ter medo em relação a Deus: por várias vezes se faz um desafio a não ter medo de Deus: “Deus é amor, e em Deus não há medo, receio, temor, antes o perfeito amor lança fora o temor. Deus é amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele “ (1 Jo 4,16 ). A quem interessa apresentar um Deus de medo? Porque será que ainda se difunde um Deus que cria medo e atemoriza (ou aterroriza) as pessoas? Não será devido à falta da ‘experiência’ de um Deus-amor e do amor de Deus na vida pessoal?

* Sem medo dos outros: que vivemos numa sociedade alicerçada no medo parece não haver dúvida. Com mais facilidade se espalha o medo do que a confiança. Com alguma vulgaridade se noticia o medo do que aquilo que nos faz viver na serenidade, interior e exterior.  Não podemos ver nem viver como se os ‘outros’ fossem nossos adversários e muito menos inimigos. Só sobreviveremos, como sociedade, se a confiança for o nosso modo de ser e de estar... Urge exorcizar tantos dos medos que povoam os nossos comportamentos mais básicos. A quem interessa continuar neste clima de medo e de tristeza? A quem será benéfico tanto medo, por vezes, mais psicológico até do que físico? Precisamos de destrancar o nosso coração, tantas vezes desconfiado, medroso e frio...

* Não terei medo de mim mesmo? ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ - diz-se em Lv 19,18. Mas a questão é essa: será que eu me amo a mim mesmo? Não será que, muitas vezes, gosto de mim – nessa subtil expressão de autoestima – mas não me amo, de verdade? Será que aceito a minha história como ela foi ou varro para debaixo do tapete da minha consciência coisas, factos e pessoas com os quais não me interessa confrontar? Saberei perdoar-me a mim mesmo, nos erros, falhas e pecados, que cometi? Não ter medo de si mesmo é conhecer-se – como se dizia no templo grego de Delfos – a si mesmo, com dons, qualidades, defeitos e lacunas de personalidade...

 António Sílvio Couto

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