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sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Que fome alimentamos?

 


Circula pelos meios digitais uma interpretação algo abusiva, senão mesmo eivada de neognosticismo, da passagem da multiplicação dos pães - texto que aparece nos quatro evangelhos e, dois deles, mais do que uma vez - onde se pretende realçar que o sinal da multiplicação dos pães (cinco) e dos peixes (dois) é mais resultado da partilha entre todos os que escutavam Jesus do que do poder do próprio Jesus sobre as forças débeis humanas e como manifestação do poder de Jesus sobre as coisas materiais. Segundo a interpretação mais clássica e comummente aceite e comentada, Jesus atende à forma daqueles que O escutam por compaixão e, embora se sirva daquilo que eles tinham, Ele abençoa, dá graças e manifesta o poder divino, mesmo quando colocamos à disposição de Deus as nossas frágeis forças e as nossas quase insignificantes capacidades, mas que Deus acolhe, aceita e multiplica...em favor dos outros.
Reparemos que Jesus, nas tentações no deserto (cf. Mt 4,2-3), recusa multiplicar o pão em seu favor, pois seria negar a sua missão de ‘salvação do povo do seus pecados’ - este o significado etimológico de ‘Jesus’ - mas fá-lo em favor dos outros e - diz o texto bíblico - que eram cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças...

* Nem só de pão vive o homem (cf. Mt 4,4). 

Esta resposta dada por Jesus ao tentador, no deserto, terá alguma consistência para a maioria dos nossos contemporâneos? Não será dramaticamente confrangedor ver que a maioria das pessoas quase só corre pelo pão que alimenta a dimensão físico-biológica da sua existência? Com que afã as pessoas gastam o seu tempo e as suas energias para satisfazerem as necessidades básicas do corpo material.

Se consultarmos a lista das entidades - públicas ou privadas, religiosas ou agnósticas, locais ou regionais, nacionais ou internacionais - que se esforçam por alimentar a dimensão corporal veremos uma longa e quase interminável relação. Quanta gente se entrega para que outras pessoas tenham o suficiente e digno para sobreviverem. A maior dos esforços são resultado - e bem - da constatação de que todos merecem o ter o mínimo para viver. Quantas horas gastas em proporcionar aos cidadãos - dizem que seja qual for a religião, a opção política ou a etnia - os meios de subsistência capazes. Com efeito, só há fome no mundo porque uns tantos - sem rosto nem moralidade - querem ter os outros presos pela boca, isto é, manifestam sobre eles poder, condicionando-lhes o acesso aos meios de alimentação. Esta luta continuará a fazer vítimas, enquanto os réus ficarem impunes quanto aos meios que usam para manipularem os outros e sentirmos um silêncio cúmplice de boa parte dos governos (ditos) democráticos... Como sói dizer-se: os pobres mantêm muitos na ribalta...

 
* Meios de afirmação consciencializada 

Talvez seja útil corrigir uma ‘estória’ que envolve fome e dar de comer, cana e pescar. Foi-se difundido a asserção de que mais importante do que dar o peixe, é importante ensinar a pescar… É aqui que entra a correção da lição a ministrar. Dizem que é preciso dar o peixe para que, ensinado a pescar, o usufrutuário da pesca, tenha força, saber e capacidade de, tendo aprendido a pescar, saiba sobreviver com os meios que lhe foram dados, potenciando-os e fazendo-os crescer…deixando de estar dependente dos subsídios que recebe.
É fundamental que atendamos às várias fomes do nosso tempo. Da fome material há dados: 820 milhões de pessoas são atingidas pela fome mensurável em quadros comparativos e que se repercute na procura por alimento. Mas seremos capazes de perceber tantas outras fomes: psicológicas, emocionais, espirituais e religiosas?
Mesmo que de forma mais ou menos incipiente temos procurado atenuar a fome corporal. Até sabemos quais são as causas que a provocam. No entanto, não temos tido o mesmo empenho em satisfazer a fome do divino. Alguns considerarão isso como algo desprezível ou quase-inútil. Outros envolverão tais preocupações em matérias (ditas) metafísicas e outros ainda, por razões ideológicas, preferem entreter o povo com ‘pão e jogos’, à boa maneira dos romanos em maré de afundamento moral e cívico…
Efetiva e afetivamente ‘nós’ gostamos e apreciamos aquilo de que temos conhecimento e nos dá prazer. Por desconhecimento dos ‘prazeres’ não-materiais, poderemos contentar-nos só com aqueles, depreciando os outros e vivendo numa vida não-completa.



António Sílvio Couto

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