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sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Síndrome de ‘capitalista’…

 Embora com meses de fermentação o assunto veio mais à luz do dia em plena campanha eleitoral para as eleições autárquicas: a proposta de transferência do Tribunal Constitucional (TC) de Lisboa para Coimbra.

As posições partidárias são de natureza política ou mesmo tática daquilo que mais convenha. Agora a posição da maioria dos juízes do dito TC – dos treze que se pronunciaram, dez votam contra – roçam algo bem mais preocupante. Veja-se os termos, em janeiro passado, com que foi argumentado: “A transferência seletiva da sede de um órgão de soberania, baseada em qualquer critério que não seja o da natureza e dignidade constitucional das funções que desempenha, não poderia deixar de constituir um grave desprestígio”.  

Não se denota nesta posição corporativa algum complexo de haver um território de primeira e o resto ser de outra classificação menos abonatória? Não perpassa neste posicionamento uma visão de superioridade da ‘capital’ sobre a ‘província’?  Não serão, na sua maioria, os juízes procedentes dessa tal ‘província’ desprestigiante? Por que terão, então, pejo de saírem da capital com mais dignidade do que outras cidades?

 1. ‘Portugal é Lisboa e o resto é paisagem’. Esta frase parece que é atribuída a Eça de Queirós, denuncia uma visão de um tempo e de uma época, mas que parece ainda preencher a cabeça e as palavras de muitos daqueles que, a partir de Lisboa, continuam a mandar ‘bitaites’ e a fomentar um razoável centralismo bacoco, antiquado e sem nexo. Quando surgem hipóteses de mudanças lemos e vemos argumentos tão vazios e ignóbeis de pessoas que deviam pensar naquilo que dizem, fazem ou usam como diferença…

 2. Uma certa macrocefalia de pendor ‘capitalista’ percorre o comportamento de tantos dos políticos, seja qual for o partido ou mesmo a tendência ideológica. Uma longa lista de serviços, de entidades públicas e mesmo de empresas encontram-se sediadas na capital, tornando o resto do país uma paisagem cinzenta, sem capacidade de gerir fundos ou mesmo de reivindicar melhores condições. Diante destas observações poderemos questionar: que faz uma pretensa ministra da ‘coesão territorial’, se o resto da paisagem é preterido nas decisões? Para que serve ter no elenco governativo – no atual como noutros – um ‘ministro da agricultura’, se as gentes rurais não têm voz, senão for nas ruas da capital a protestar contra os preços ridículos que pagam aos que trabalham a terra? A economia é só urbana, não tem expressão fora da capital?

 3. Noutros países, como na Alemanha, na Suíça ou na Rússia, os serviços idênticos ao do TC e de outros órgãos de soberania funcionam fora da capital do país. Por razões históricas isso é aceitável e continua com bom proveito das cidades onde tais serviços estão instalados.

Ainda recentemente (2017) se gerou, no nosso país, uma larga discussão sobre a possibilidade de transferir os serviços do ‘infarmed’ de Lisboa para o Porto… Muita parra e nenhum sumo, pois a questão além de precipitada não passava de uma espécie de ‘fait-divers’, que se inseria na compensação por o Porto ter perdido na candidatura à ‘agência europeia do medicamento’, que saiu da Inglaterra e foi para a Holanda… ao tempo. Boa parte dos funcionários do ‘infarmed’ rejeitaram a mudança…e mais uma vez um serviço continuou jocosamente na capital.

 
4. Ainda antes de ser tomada a decisão mais definitiva sobre a possibilidade do TC mudar de Lisboa para Coimbra logo apareceram os obstáculos dos cerca de cem funcionários adstritos o serviço. Mais uma vez a sedimentação dos funcionários coarta a mobilização e nem a dita lei da mobilidade de 2017 consegue ultrapassar os óbices mais de mente do que de gestão daquilo que importa ao país no seu todo.

Coimbra, cidade que tantas ínclitas figuras do direito tem dado, não foi atraente para uns senhores – são oito homens e cinco senhoras – sediados na capital se deixassem seduzir pela ‘lusa Atenas’ do choupal e do Mondego. A cidade sentiu nisso uma espécie de insulto e, pior, considerou que tal atitude contribuiu para o desprestígio do TC.  

Os tiques da ‘velha senhora’ – epíteto com que rotularam o regime anterior ao 25 A – ainda tem muitos servidores e sequazes. Até quando?

 

António Sílvio Couto    

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