Foi num
misto de surpresa e de contentamento que vimos surgir nas televisões o final do
desaparecimento de um menino de dois anos e meio nas terras recônditas de
Proença-a-Velha, nos arredores de Castelo Branco: foram trinta e seis horas de
sobressalto, de medo e de confusão, pois uma criança saiu de casa e andou
perdido, sem alimentação e sobrevivendo aos temores de uma noite, no campo,
sozinho…
Mesmo
que se tente desdramatizar o episódio, ele tem algo de questionável. Mesmo que se
faça parecer um caso simples, ele comporta facetas de complexidade. Mesmo que
tudo tenha acabado quase-bem, ainda há pormenores por aferir…
Deixando
a quem de direito que dê respostas, que se faça a verdadeira destrinça entre o
essencial e o secundário, que possa tudo voltar ao normal…tenho a sensação de
que se deveria fazer uma reflexão sobre alguns aspetos culturais e sociais que
este acontecimento nos proporciona.
1. Antes de mais perguntamos: que
vida queremos para nós mesmos e para os descendentes (filhos, netos e outros)?
Quando uma criança de tão tenra idade consegue saber lidar com a terra –
espaço, lugar, situação ou circunstância – como explicar a infantilidade e,
sobretudo, a infantilização de tantos/as outros/as em meio (dito) urbano ou
pretensamente citadino? Como interpretar a autonomia daquela criança, quando
vemos a monotorização de tantos com quem convivemos e mais nos parecem joguetes
sem vontade nem decisão? Com esses resguardos para com as crianças (ditas)
normais, casos como o deste menino não envergonham tantos projetos educativos,
que mais não fazem do que criar homúnculos e ‘criaturas’ desprovidas de
capacidade de enfrentar a vida com valores e os mínimos critérios? Não faltará,
tantas vezes, coluna vertebral a vários dos nossos pedagogos, que preferem a
moleza à educação séria, serena e substancial?
2. Registemos o significado do nome
da criança: Noah. De facto, ‘noah’ significa “descanso”, “repouso”, “de longa
vida”. Noah é um nome inglês e bíblico, de origem hebraica. Surge na forma de
No'ah, que por sua vez teria surgido a partir da palavra noach
("descanso"). Noah é uma variação bastante popular na língua inglesa,
considerada o equivalente em português de Noé e significa “descanso”, “repouso”
ou, ainda, “de longa vida".
3. Vivemos num tempo onde as opções
de vida têm de ser reaferidas ao projeto que se pretende concretizar, usando os
meios e criando, se preciso for, as ruturas com as tais normalidades que não
passam de acomodações consumistas, materialistas e quase-sem Deus. Começa a ser
habitual que famílias – nalguns casos ainda jovens – troquem o bulício da
cidade pela pacatez do campo, usando os meios tecnológicos para se manterem em
contato com a (dita) civilização ou criando novas formas de sobrevivência no
meio da natureza. Casas antes desabitadas e em ruínas emergem na paisagem do
interior do nosso país, não já por não ter para onde irem os seus habitantes,
mas exatamente por as terem escolhido para como residência. O caso em apreço na
situação do menino-rural parece ser uma dessas situações…
4. Sente-se a falta de equilíbrio
na maior parte das pessoas, tanto na sua personalidade, como na conduta de vida
e mesmo na assunção da sua procedência. Parece que se perdeu a noção de que a
nossa correta relação com a Terra fará de nós pessoas equilibradas no pensar,
no sentir e, mesmo, no agir. Duma forma um tanto provocatória poderemos dizer:
andar descalço traz benefícios à nossa saúde, descarrega as energias acumuladas
para a terra e faz-nos sentir irmanados com as nossas raízes… Claro que temos
de saber o terreno que pisamos! Por que será que as pessoas em tempo de férias
e na praia são um tanto mais calmas?
5. À semelhança do pequeno Noah
também eu me sujei na terra, senti o seu odor e convivi com as coisas do campo.
Aliás tenho a sensação de que isso me é muito útil para entender alguma da
linguagem de Jesus nos evangelhos, sobretudo quando se refere à sua forma
específica de ensino através das parábolas. Por vezes sinto alguma perplexidade
de pessoas que, não tendo tido a graça de um certo espírito rural, talvez
tenham dificuldade em penetrar mais acertadamente na mensagem evangélica…
António Sílvio Couto
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