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segunda-feira, 21 de junho de 2021

Estórias do menino-rural

 


Foi num misto de surpresa e de contentamento que vimos surgir nas televisões o final do desaparecimento de um menino de dois anos e meio nas terras recônditas de Proença-a-Velha, nos arredores de Castelo Branco: foram trinta e seis horas de sobressalto, de medo e de confusão, pois uma criança saiu de casa e andou perdido, sem alimentação e sobrevivendo aos temores de uma noite, no campo, sozinho…

Mesmo que se tente desdramatizar o episódio, ele tem algo de questionável. Mesmo que se faça parecer um caso simples, ele comporta facetas de complexidade. Mesmo que tudo tenha acabado quase-bem, ainda há pormenores por aferir…

Deixando a quem de direito que dê respostas, que se faça a verdadeira destrinça entre o essencial e o secundário, que possa tudo voltar ao normal…tenho a sensação de que se deveria fazer uma reflexão sobre alguns aspetos culturais e sociais que este acontecimento nos proporciona.

 1. Antes de mais perguntamos: que vida queremos para nós mesmos e para os descendentes (filhos, netos e outros)? Quando uma criança de tão tenra idade consegue saber lidar com a terra – espaço, lugar, situação ou circunstância – como explicar a infantilidade e, sobretudo, a infantilização de tantos/as outros/as em meio (dito) urbano ou pretensamente citadino? Como interpretar a autonomia daquela criança, quando vemos a monotorização de tantos com quem convivemos e mais nos parecem joguetes sem vontade nem decisão? Com esses resguardos para com as crianças (ditas) normais, casos como o deste menino não envergonham tantos projetos educativos, que mais não fazem do que criar homúnculos e ‘criaturas’ desprovidas de capacidade de enfrentar a vida com valores e os mínimos critérios? Não faltará, tantas vezes, coluna vertebral a vários dos nossos pedagogos, que preferem a moleza à educação séria, serena e substancial?   

2. Registemos o significado do nome da criança: Noah. De facto, ‘noah’ significa “descanso”, “repouso”, “de longa vida”. Noah é um nome inglês e bíblico, de origem hebraica. Surge na forma de No'ah, que por sua vez teria surgido a partir da palavra noach ("descanso"). Noah é uma variação bastante popular na língua inglesa, considerada o equivalente em português de Noé e significa “descanso”, “repouso” ou, ainda, “de longa vida".

 3. Vivemos num tempo onde as opções de vida têm de ser reaferidas ao projeto que se pretende concretizar, usando os meios e criando, se preciso for, as ruturas com as tais normalidades que não passam de acomodações consumistas, materialistas e quase-sem Deus. Começa a ser habitual que famílias – nalguns casos ainda jovens – troquem o bulício da cidade pela pacatez do campo, usando os meios tecnológicos para se manterem em contato com a (dita) civilização ou criando novas formas de sobrevivência no meio da natureza. Casas antes desabitadas e em ruínas emergem na paisagem do interior do nosso país, não já por não ter para onde irem os seus habitantes, mas exatamente por as terem escolhido para como residência. O caso em apreço na situação do menino-rural parece ser uma dessas situações…

 4. Sente-se a falta de equilíbrio na maior parte das pessoas, tanto na sua personalidade, como na conduta de vida e mesmo na assunção da sua procedência. Parece que se perdeu a noção de que a nossa correta relação com a Terra fará de nós pessoas equilibradas no pensar, no sentir e, mesmo, no agir. Duma forma um tanto provocatória poderemos dizer: andar descalço traz benefícios à nossa saúde, descarrega as energias acumuladas para a terra e faz-nos sentir irmanados com as nossas raízes… Claro que temos de saber o terreno que pisamos! Por que será que as pessoas em tempo de férias e na praia são um tanto mais calmas?

 5. À semelhança do pequeno Noah também eu me sujei na terra, senti o seu odor e convivi com as coisas do campo. Aliás tenho a sensação de que isso me é muito útil para entender alguma da linguagem de Jesus nos evangelhos, sobretudo quando se refere à sua forma específica de ensino através das parábolas. Por vezes sinto alguma perplexidade de pessoas que, não tendo tido a graça de um certo espírito rural, talvez tenham dificuldade em penetrar mais acertadamente na mensagem evangélica…

 

António Sílvio Couto

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