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domingo, 27 de junho de 2021

Banir, de vez, o ‘vai ficar tudo bem’

 


O slogan – ‘vai ficar tudo bem’ enxameou o país em breves momentos. Mesmo que não soubessem o que significava nem quem estava por detrás, ele andou por todo o lado. Pior ainda se foi embarcando na simbologia que acompanhava tais palavras – o arco-íris, sem descortinar quem estaria contido naquele ‘desenho’… Por muitas e diversas formas percebemos – passados mais de quinze meses de pandemia – que nada daquilo que se desejava concretizou, pelo contrário, temos de reaprender a discernir que não está nem ficou ‘tudo bem’!

 1. Aquele slogan além de temerário soa a alucinado, pois, muito daquilo que vivemos veio, afetiva e efetivamente, alterar as nossas rotinas, desde as mais básicas até às mais elaboradas, isto é, desde o nosso modo de estarmos com as coisas – repare-se no contínuo e obrigatório estado de higienização e de resguardo através da máscara – até para com as pessoas – o distanciamento, o não-convívio e mesmo as formas alteradas de saudação – tornando-nos todos mais frios, na desconfiança e quase insociáveis… Não vai ficar nem está tudo bem!

 2. Passamos, regra geral, a privilegiar a saúde a outros fatores de relacionamento humano. Por precaução e até por medo fomos vivendo várias etapas de confinamento mais ou menos rude para com as atividades sociais, culturais, religiosas, económicas… Estaremos a vivenciar a 4.ª fase de propagação/defesa quanto ao vírus, nas suas mais díspares mutações. Com tantas e multiformes alterações ainda poderemos considerar que ‘vai ficar tudo bem’?  

 3. Dá a impressão que estamos a desaproveitar uma oportunidade por excelência de reconfigurar a nossa vida, tanto pessoal como familiar e mesmo social. Talvez não tenhamos tido muitas outras circunstâncias como esta para rever os critérios, aferir os valores e recuperar o essencial. Continuamos a alimentar mitos e alucinações. Há casos em que se pretende continuar a ignorar uma tal ética/moral centrada no efémero. Contabilizados mais de dezoito mil mortos, como ousa alguém considerar que ‘vai ficar tudo bem’?

 4. Como não questionar a nossa forma de viver, ao sermos confrontados com milhares de mortos que foram sendo sepultados sem ter podido ser feito o luto na hora conveniente? Como não sentir que algo mudou radicalmente quando os falecidos foram subtraídos à vista e ao convívio humano, agonizando no abandono e até no anonimato esconso e atroz dos locais de quase não-saúde? Como não precisar de algo que faça ainda acreditar na pessoa humana, quando o medo atravessou a alma de tantos que foram vítimas deste vírus medonho, silencioso e mortífero?  

 5. Há mudanças que precisam de ser encetadas, tanto ao nível pessoal como social, no enquadramento familiar como nas questões laborais, no vínculo de proximidade como no trato cívico. De facto, seria um erro histórico se quiséssemos que ficasse ‘tudo bem’ pela simples razão de nos sentirmos intocáveis nas nossas convicções mais ou menos suscetíveis de serem questionadas, pois esta pandemia trouxe à luz do dia muito daquilo que há de bom nas pessoas, pela solidariedade na desgraça, mas também revelou, quase inconscientemente, muito do egoísmo enraizado no coração de tantos nossos contemporâneos. A prova desta faceta menos boa tem sido o descuido de setores da população que se acham no direito, pelos seus atos e comportamento, de não cumprirem as regras comuns, preferindo sobrepor os seus interesses ao bem dos outros.

 6. Não, não ficou tudo bem e, se não velarmos, tudo irá piorar. No presente já percebemos que houve mudanças. Sobre o passado há tanta coisa reversível. Para o futuro só nos espera capacidade de diferença!

 António Sílvio Couto

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