O slogan – ‘vai
ficar tudo bem’ enxameou o país em breves momentos. Mesmo que não soubessem
o que significava nem quem estava por detrás, ele andou por todo o lado. Pior
ainda se foi embarcando na simbologia que acompanhava tais palavras – o
arco-íris, sem descortinar quem estaria contido naquele ‘desenho’… Por muitas e
diversas formas percebemos – passados mais de quinze meses de pandemia – que
nada daquilo que se desejava concretizou, pelo contrário, temos de reaprender a
discernir que não está nem ficou ‘tudo bem’!
1. Aquele slogan além de temerário soa a alucinado, pois,
muito daquilo que vivemos veio, afetiva e efetivamente, alterar as nossas
rotinas, desde as mais básicas até às mais elaboradas, isto é, desde o nosso
modo de estarmos com as coisas – repare-se no contínuo e obrigatório estado de
higienização e de resguardo através da máscara – até para com as pessoas – o
distanciamento, o não-convívio e mesmo as formas alteradas de saudação –
tornando-nos todos mais frios, na desconfiança e quase insociáveis… Não vai
ficar nem está tudo bem!
2. Passamos, regra geral, a privilegiar a saúde a outros
fatores de relacionamento humano. Por precaução e até por medo fomos vivendo
várias etapas de confinamento mais ou menos rude para com as atividades
sociais, culturais, religiosas, económicas… Estaremos a vivenciar a 4.ª fase de
propagação/defesa quanto ao vírus, nas suas mais díspares mutações. Com tantas
e multiformes alterações ainda poderemos considerar que ‘vai ficar tudo bem’?
3. Dá a impressão que estamos a desaproveitar uma
oportunidade por excelência de reconfigurar a nossa vida, tanto pessoal como
familiar e mesmo social. Talvez não tenhamos tido muitas outras circunstâncias
como esta para rever os critérios, aferir os valores e recuperar o essencial. Continuamos
a alimentar mitos e alucinações. Há casos em que se pretende continuar a ignorar
uma tal ética/moral centrada no efémero. Contabilizados mais de dezoito mil
mortos, como ousa alguém considerar que ‘vai ficar tudo bem’?
4. Como não questionar a nossa forma de viver, ao sermos
confrontados com milhares de mortos que foram sendo sepultados sem ter podido ser
feito o luto na hora conveniente? Como não sentir que algo mudou radicalmente
quando os falecidos foram subtraídos à vista e ao convívio humano, agonizando
no abandono e até no anonimato esconso e atroz dos locais de quase não-saúde?
Como não precisar de algo que faça ainda acreditar na pessoa humana, quando o
medo atravessou a alma de tantos que foram vítimas deste vírus medonho,
silencioso e mortífero?
5. Há mudanças que precisam de ser encetadas, tanto ao
nível pessoal como social, no enquadramento familiar como nas questões
laborais, no vínculo de proximidade como no trato cívico. De facto, seria um
erro histórico se quiséssemos que ficasse ‘tudo bem’ pela simples razão de nos
sentirmos intocáveis nas nossas convicções mais ou menos suscetíveis de serem
questionadas, pois esta pandemia trouxe à luz do dia muito daquilo que há de
bom nas pessoas, pela solidariedade na desgraça, mas também revelou, quase
inconscientemente, muito do egoísmo enraizado no coração de tantos nossos
contemporâneos. A prova desta faceta menos boa tem sido o descuido de setores
da população que se acham no direito, pelos seus atos e comportamento, de não
cumprirem as regras comuns, preferindo sobrepor os seus interesses ao bem dos
outros.
6. Não, não ficou tudo bem e, se não velarmos, tudo irá
piorar. No presente já percebemos que houve mudanças. Sobre o passado há tanta coisa
reversível. Para o futuro só nos espera capacidade de diferença!
António Sílvio Couto
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