De
entre as várias medidas lançadas pela segunda vaga de ‘estado de emergência’ há
uma que, certamente, não será esquecida por muito tempo: não se pode circular
para fora do concelho de residência habitual entre 9 e 13 de abril, isto é,
desde a quinta-feira da semana santa até à segunda-feira após o domingo de
Páscoa… Quem infringir o estipulado terá pesado castigo!
As
várias medidas restritivas decorrentes do estado de pandemia do ‘covid-19’
tentam (tentaram ou tentarão) criar condições para controlar o problema,
condicionando as pessoas o mais possível à sua casa. Embora uma parte
significativa de pessoas tenha entendido, suportado e vivido este regime, nem
sempre os factos foram tão benéficos quanto seria suposto num tempo de
civilização…
= Será
que o confinamento das pessoas à sua residência resolverá, efetivamente, o
problema da disseminação do vírus? Não andaremos a enfatizar pormenores – uso
de máscaras, desinfeções e outros adereços – esquecendo-nos do essencial? O tal
resguardo social não passará de um disfarce para enfrentarmos o que é mais
importante, saber respeitar os outros mais do que vivermos sem restrições nem
regras?
= Em
tudo isto que temos estado a viver – mais intensamente desde meados de março –
podemos encontrar um chamamento a refletirmos sobre tantas coisas da nossa vida
pessoal e social. De facto, em tempos de cristandade – correspondência entre
sociedade e Igreja, misturando-se as funções, os atributos e mesmo as
consequências… vigorou, nos países ocidentais, até meados do século XX – havia
alguns condicionamentos em tempo de quaresma, desde a simbologia das cinzas até
à erupção festiva da Páscoa: manifestações festivas eram contidas nesses dias,
criando um ambiente de penitência coletiva/social. Com alguma da pretensa
emancipação da sociedade – dita civil, mas antes civilista – como que acabaram,
na maior parte do território nacional – cingimo-nos ao nosso país – gestos,
atitudes, cores e devoções de âmbito geral… Se excetuarmos algumas procissões
de ‘passos’ e certos ritos de ‘via-sacra’, a quaresma passou a ser uma questão
de minoria, senão exótica ao menos exotérica, isto é, para iniciados.
Mas eis
que o coronavírus ‘covid-19’ colocou toda a sociedade em quarentena. Só por ignorância
ou má-fé se não faz a ligação entre as duas palavras, tanto na origem como na
execução. Não queriam aceitar as regras religiosas, mas as circunstâncias
higiene-sanitárias a tal exigem. Não queriam reter-se para celebrar as ‘coisas
da religião’, agora fazem-no por coação. Fugiam de férias para o Algarve e em
destinos de veraneio, agora estão confinados ao concelho de residência.
Estavam-se nas tintas para as tricas religiosas católicas, agora se
desobedecerem podem cair nas malhas da lei, indo ocupar as celas dos presos em
soltura por indulto do Presidente…
= Sobre
o significado etimológico da palavra ‘páscoa’ temos de ir ao hebraico – ‘pesah’
– caminhar pelo grego – ‘paskha’ – andar pelo latim – ‘pascha’ – e dizermos em
português, páscoa. Como festa de origem judaica remonta à vivência do êxodo do
povo de Deus do Egipto em libertação: Deus passa, libertando o seu povo; o povo
de Deus passa (sai), liberto da escravidão (cf. Ex 12). Assim, em cada ano, ao
celebrar a Páscoa, os judeus estavam a fazer memória desse momento constitutivo
como povo e nação.
Ora, a
paixão-morte-ressurreição de Jesus aconteceu por ocasião da celebração da festa
da Páscoa judaica. Isso fará com que os discípulos de Jesus ao celebrarem a
ressurreição do Senhor lhe associem aquilo que eram as suas raízes no judaísmo.
De verdade, o centro da fé cristã é a celebração da Páscoa de Jesus, tal como
disse São Paulo: ‘se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé’ (cf.1 Cor 15,14).
Mas
será que ao vermos tantos cristãos a trocarem uns dias de férias pela
não-celebração da Páscoa não estaríamos a subverter em proveito próprio o
central do mistério que levava a que tivessem algum tempo de descanso? Esses
que tal tinham tal programa de vida já se questionaram sobre o significado mais
profundo desta prescrição de isolamento não-social? O que faltará ainda para
que deixemos de usufruir das coisas – vejam-se as comidas de páscoa e outros
adereços – sem delas saberem o conteúdo e significação?
Páscoa
é passagem de quê, para quem e porquê? A quaresma foi forçada, a Páscoa será
mais consciente?
António Sílvio Couto
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