Considerada
pela tradição católica como a ‘semana maior’ – não pela extensão dos dias, mas
pelo significado de cada um deles – a Semana Santa reveste-se dum significado
muito especial no quadro da espiritualidade católica e este ano de uma forma
ainda mais especial, dado o estado de confinamento à habitação de cada um de
nós.
Embora
estes dias sejam de contenção e de silêncio, eles ganham ainda mais significado
se nos ativermos à abrangência de tudo isto por todo o mundo, onde a Igreja se
insere, participa e comunga de igual vivência.
Na
capacidade de adaptação que temos, vão surgindo propostas, algumas delas com
interesse, para vivermos, pessoal e familiarmente, este tempo de ‘semana
santa’. Assim, a diocese de Setúbal apresentou a ‘cruz em rede’, onde se fazem
sugestões para cada dia, enquanto se compõe uma cruz com os símbolos diários.
Eis o
itinerário:
– Nos
três primeiros dias – segunda, terça e quarta – algo que nos pode e deve
fazer refletir. Referimo-nos ao ‘mistério de Judas Iscariotes’, esse que foi o
traidor e que entregou Jesus às mãos dos judeus para vir a ser morto. Com
efeito, os textos da liturgia da palavra da missa desses dias são assaz
‘perturbadores’ – Jo 12,1-11: Judas questiona o uso do perfume de Madalena para
com Jesus; Jo 13,24-33.36-38: Jesus preanuncia a traição de Judas e as negações
de Pedro; Mt 26,14-25: Judas como que negoceia a entrega de Jesus aos chefes
judaicos.
Efetivamente,
‘Judas Iscariotes’ sempre foi um mistério: ele que viveu com Jesus tornou-se o
veículo para entregá-Lo aos seus adversários, tanto religiosos como políticos.
Aí está o confronto com a nossa (minha) condição de discípulo envergonhado,
manhoso e talvez traidor…
– Quinta-feira santa tem
dois grandes vetores: a missa crismal e a celebração da ‘ceia do Senhor’
* Missa crismal – dom do sacerdócio
Aquilo
que deveria acontecer na manhã desta quinta-feira santa – a reunião de todo o
presbitério com o seu bispo – é adiado para outra data oportuna, quando passar
esta fase de resguardo social. Mesmo assim valerá a pena aflorar sobre o
sentido desta ‘missa crismal’: ela é a expressão de comunhão de todo o
presbitério e nela se faz a renovação do compromisso sacerdotal. É um momento
fundamental de todo o padre e da própria diocese: não pode haver verdadeiro
ministério sem comunhão dos padres uns com os outros e de todos com o bispo
diocesano…mesmo que possa ser só padre religioso!
* Celebração da ‘ceia do Senhor’
Na
tarde (ou ao final da mesma) da 5.ª feira santa, a Igreja convida-nos a
celebrar ‘a missa vespertina da ceia do Senhor’, confluindo para esta
celebração o memorial da páscoa judaica e a instituição que Jesus faz da
eucaristia, isto é, o memorial do Seu Corpo e Sangue. O rito dos ‘lava-pés’ apresenta-se
como um sinal central, introduzindo-nos ao mistério da
paixão-morte-ressurreição de Jesus. Ora, atendendo a reduzida participação de
fiéis na celebração, tal rito não se faz…este ano.
= Na proposta da ‘cruz em rede’, a
sugestão diocesana coloca-nos diante de breves considerações: desde logo a
preparação e confeção do pão ázimo (sem fermento) para a vivência da refeição
da ‘ceia’, onde é apresentado também um caminho de lava-pés em família, bem
como uma bênção da mesa com salmos, ritos e orações apropriados à presença em
família, associando todos os elementos, inclusive as crianças…numa quase
para-liturgia com sabor a shabat hebraico. Inclui-se ainda um tempo de oração
de vigília, com textos da agonia de Jesus no horto das oliveiras (cf. Mc
14-32-42) e uma breve oração de intercessão pelos vários intervenientes neste
clima de pandemia.
– Sexta-feira santa centrada na
leitura da Paixão e na adoração da Cruz
Como
dia de jejum e de abstinência, o dia de sexta-feira santa faz-nos caminhar em
recolhimento e até em contenção de palavras, meditando a narrativa da Paixão
segundo São João, vivendo a adoração da Cruz – onde nem devia estar a imagem do
Senhor para que a cruz fosse sentida como verdadeiro instrumento e sinal de
salvação – e sendo alimentados pela eucaristia dos pré-santificados. Neste dia
é duma grande beleza e simbologia a longa oração universal, onde, desde tempos
imemoriais, se reza por tudo e por todos…até pelos descrentes e ateus, com este
ano a incluir-se uma prece pelo estado de pandemia.
= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana
coloca-nos num ambiente em casa um tanto idêntico àquele que deveríamos ter nos
espaços litúrgicos: com uma cruz, uma toalha branca e um recipiente com água…à
mistura com não muita luz. É sugerido que se possa seguir uma transmissão
(televisiva ou via internet) das celebrações de 6.ª feira santa. A leitura da
paixão segundo o evangelho de São João – Jo 18,1-19,42 – ocupa um largo espaço.
Depois faz-se a adoração da cruz, que termina com uma oração de um autor do século
IX, lembrando várias facetas de pedido de perdão e de adoração ao sinal da
Cruz. Em família faz-se a ‘sepultura’, que consta em envolver a cruz numa
toalha, que simboliza o ‘sudário’…entrando-se no grande silêncio de ontem e de
hoje.
Segundo
alguns costumes, nesta noite de 6.ª feira santa, far-se-ia a procissão ‘do
enterro do Senhor’, termo indevido, pois não levamos ninguém a enterrar e tão
pouco a sepultar, antes, pelo silêncio e a meditação – onde a música pode e
deve ajudar-nos – caminhamos escutando textos do sepultamento de Jesus. É algo
anacrónico que alguém participe na ‘procissão do enterro do Senhor’ se não
viveu o resto da liturgia desse dia… Certos folclores precisam de ser
purificados e exorcizados, à luz duma formação simples, aceite e crescente…
– Sábado santo: do silêncio à
explosão da luz…ressuscitada e ressuscitadora
Num dia
sem celebrações litúrgicas, preparamo-nos para a significativa vivência da
vigília pascal, que nos coloca diante de quatro grandes dimensões litúrgicas:
da luz, da Palavra, batismal e eucarística. Cada uma delas é longa e essencial
para a nossa fé cristã. Por isso, a vigília pascal não pode ser feita a correr
e talvez seja uma abuso fazer mais do que uma nessa mesma noite… Na liturgia da
luz contemplamos, em forma de oração, o mistério da redenção operada pela
ressurreição do Senhor, luz que brilha nas trevas; na liturgia da Palavra
percorremos os momentos essenciais da história da salvação em ordem à
ressurreição do Senhor; na liturgia batismal acolhemos novos irmãos e renovamos
o nosso batismo; na liturgia eucarística damos graças e recebemos o dom do
Senhor vivo e ressuscitado para sempre.
= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana
coloca-nos, desde a manhã deste dia de sábado santo na expetativa, incluindo os
elementos figurativos: a toalha que envolveu a cruz, tem um certo espaço de
simbólica, merecendo que junto dela se acenda uma vela, em sinal de respeito e
alguma reverência. É proposta a leitura de uma homilia antiga de sábado santo,
onde se fala do grande silêncio que ‘cobre a terra’. Os momentos de oração
comuns são extraídos do livro do Cântico dos cânticos.
A noite
de oração – réplica da vigília pascal – desenvolve-se à mesa, que deve ser
festiva. O início da ‘celebração’ dá-se à entrada da porta de casa, num misto
de alusão judaica e de liturgia cristã…de liturgia da luz, com a intervenção da
mãe e do pai. Chegados junto da mesa todos ficam em pé, enquanto a mãe coloca a
vela no centro da mesa. Lê-se, então, a narrativa de São Mateus (28,1-10) da
ressurreição de Jesus. Após um breve tempo de silêncio é feita a proclamação da
Páscoa com o ‘glória a Deus nas alturas’, saudação da paz, acendendo-se as
velas na mesa e prosseguindo o jantar… durante o qual se reza o credo e o
pai-nosso. O pai dá graças sobre o pão, repartindo-o por todos… Na conclusão da
ceia far-se-á uma oração a Nossa Senhora, como por exemplo o ‘Regina Coeli’…
Sobre a
dinâmica do domingo de Páscoa falaremos depois.
António Sílvio Couto
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