Os
episódios mais recentes da nossa história comum – que é muito mais do meramente
coletiva – coloca-nos diante de uma experiência quase dramática de cada um e de
todos: num ápice caiu o (propagandeado) ‘sucesso’ económico; aquilo que há um
mês – início de março – era certeza, hoje – meados de abril – é dúvida, medo ou
ansiedade; setores que eram considerados de grande pujança, estão hoje nas ruas
da amargura, senão fechados prestes a implodir; filas de espera nos
restaurantes trocaram de indumentária e mendigam à porta dos espaços
assistenciais particulares ou institucionais; as escolas estão vazias e
tristemente silenciosas, onde agora chilreiam pássaros antes eram tolhidos pelo
barulho das crianças; os espaços de culto estão encerrados à participação de
fiéis, entretanto transformados em telespectadores e cibernautas com
celebrações à la carte; aquilo que antes era normal, agora é considerado
excecional…a alma da nossa identidade cultural foi ferida, está magoada e,
nalguns casos, quase moribunda…
Talvez
estejamos a viver a pior crise humanitária generalizada desde o final da
segunda guerra mundial: esta é cultural e não só bélica; é de regime e não só
de sistema; é de todos e não de uns tantos, que se reclamavam vencedores; agora
somos todos derrotados…até os que possam tê-la desencadeado. O mundo foi
varrido por esta pandemia em resultado de muitos condicionantes, razoáveis ou
até irracionais.
Se a
saúde – biológico-química sem deixar de atender à de índole
psicológico-espiritual – foi posta em risco, algo mais nos deve fazer refletir
sobre tantos dos problemas a que temos dado alguma importância, pois muitos
deles não passam de ninharias diante do essencial. A transversalidade de tudo
que estamos a viver faz-nos ser mais humildes, pois não conseguimos ascendente
de uns sobre os outros e, quem tal ousar, saberá que está a faltar à verdade
moral, filosófica e até metafísica.
= Será,
entretanto, oportuno recordar a contraposição entre os princípios,
tendencialmente, individualistas da ‘revolução francesa’ de 1789 – liberdade,
igualdade e fraternidade – com novos princípios e critérios decorrentes da
revolução de 1989, com a queda do ‘muro de Berlim’ – cf. João Paulo II, carta
encíclica ‘Centesimus annus’, no
centenário da Rerum novarum, de 1 de maio de 1991, n. os 22-29. De
algum modo se introduz uma nova designação daqueles princípios agora mais na
dimensão personalista da pessoa e da convivialidade com os outros: democracia,
participação e solidariedade.
É tendo
em conta esta onda de interdependência em tudo o que temos estado a fazer – e o
mais que possa vir a ser preciso – é pouco, embora significativo. Com efeito,
será tomando medidas para suster o contágio do ‘covid-19’ que estaremos a
cuidar de nós mesmos e dos outros numa intercomunhão de gestos, de atitudes e
de ações.
Esta
pandemia veio colocar a nu muito daquilo que já anteriormente era considerado
subjacente: há uma razoável fatia (ou será fação?) da nossa sociedade que ainda
não interiorizou que estamos em interligação muito mais do que funcional, logo
que se um não aceita as regras sociais ou não se comporta em função dos outros,
todos somos prejudicados…mais cedo do que mais tarde.
= Nesta
conjugação de vivências a que temos estado a ser submetidos, há questões que
não podemos deixar de atender. Mais do que solidários na desgraça temos de
saber criar condições para sermos solidários nas boas propostas, na criação de um
razoável espírito de partilha, na conjugação dos critérios de convivência, na
sintonia com os valores de humanismo, na disponibilidade para sabermos estar
mais a pensar nos outros do que em nós mesmos.
Mesmo
que uma certa maioria da comunicação social nos vá infestando de notícias negativas
e obscuras, temos de ir vislumbrando sinais de esperança em tantos gestos de
dedicação aos outros, seja na área da saúde, seja no âmbito do social. Os
números estão dados a público: mais de cem mil idosos (velhos, muito velhos)
vivem em lares de não-família, muitos deles cuidados por instituições de
benemerência com suporte cristão – misericórdias, IPSS (centros paroquiais ou
outros), associações de base solidária – que menorizam os estragos da solidão a
que muitos dos mais velhos são lançados. Espera-se que o Estado acorde para
este setor da ‘economia social’ e não se limite a lançar dinheiro aos seus
apaniguados…na cor ou na ideologia!
António Sílvio Couto
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