Espalhou-se numa espécie de estandarte-slogan,
dizendo ‘vai ficar tudo bem’…associando à frase um grafismo com aquilo que
faria lembrar o arco-íris. E, de repente, isso pareceu tornar-se um exorcismo
coletivo sobre a pandemia em curso. Abstenho-me de tecer qualquer comentário à
imagem que quiseram associar a esta iniciativa. Seria bem dispensável para que
não se gerassem confusões ou, se as quiseram incluir, foi um ato de
aproveitamento de mau gosto e de duvidosa ética….cultural e social.
Independentemente do motivo que fez crescer este
desejo de que ‘ vai ficar tudo bem’, nota-se algum exagero naquilo que se quer
exprimir ou, pior, parece que nos querem levar ao engano, enganando-nos e sendo
enganados. Não, não ‘vai ficar tudo bem’. Este parece mais um daqueles mitos
urbanos, onde uns tantos habilidosos, querem fazer-de-conta de que nada está a
acontecer, levando os demais a esvoaçarem sobre as ruínas de algo que tinha
sido criado sobre conceitos de utopia…com sabor a materialismo.
– Efetivamente seria um desperdício de tempo – querendo
dar a entender que ‘vai ficar tudo bem’ – o distanciamento social a que a
maioria das pessoas se reduziu nas últimas semanas. Pequenos grandes gestos
podem ter ajudado a suster a disseminação do vírus. Atos de contenção na
exposição à vida pública podem ter contribuído para ganhar breves batalhas
nesta grande guerra.
Talvez se tenham dados alguns passos para recuperar
a casa – muitas vezes dita de família, mas que não passava de um rótulo frágil
e ténue – como espaço de presença das pessoas umas às outras. As refeições,
tomadas em casa contrastam com as longas filas de espera nos restaurantes,
agora em risco de fecharem temporária ou definitivamente. Andávamos – nós
portugueses em especial – a dar um ar de rico, mas que tinham medo de se
enfrentarem à mesa e no reduto da habitação, que é (ou deve ser) algo de
sagrado e não exposto à interferência alheia. Não teremos nada a mudar, depois
desta experiência forçada e necessária? Não sentimos já que a nossa casa está
mais aquecida porque nela se cozinha ou se come à mesma mesa?
Os hábitos que tínhamos precisavam de mudar, senão
por convicção ao menos por coação!
– Dizem por aí que as igrejas fecharam. Não, a
assembleia dos irmãos – na origem etimológica ‘ecclesia’, igreja – é que deixou
de se reunir com a presença de maior número de fiéis. Esta crise de pandemia
veio trazer à luz do dia possibilidades diferentes de aproveitamento das (ditas)
‘novas tecnologias’ de serem colocadas mais organizadamente ao serviço da
evangelização. Missas e outros atos de culto chegam a casa dos fiéis – leigos
ou clérigos – de uma forma idêntica à de outras informações, notícias ou comentários.
Novas ferramentas trazem novos requisitos. Não basta transmitir, por exemplo
uma missa, como se os que nos vem fossem a parte tolerada, fazendo-a para
aqueles que estão na nossa presença física. Agora é o destinatário da nossa
mensagem que está para além daquela câmara, por detrás de um visor ou diante de
um écran…
É um facto que a participação tocada não se
estabelece. Não se pode comungar o corpo de Cristo, no momento da comunhão, mas
temos de reaprender certas noções talvez menos bem explicadas, como a ‘comunhão
espiritual’ ou de desejo, preparando-nos melhor para o momento celebrativo
presencial.
Algo de idêntico se pode referir do sacramento da
penitência pela celebração da confissão. Há reaprendizagens que urge fomentar e
talvez devamos ser inventivos para que possa haver mais consciencialização da
noção de pecado, de ofensa a Deus e de agravos aos irmãos… O distanciamento
físico pode criar mais qualidade nas relações humanas e espirituais.
– Não ‘vai ficar tudo bem’, se por ‘bem’ se entender,
tudo igual. Veja-se a área da economia (trabalho, empresas, trabalhadores,
mercadorias, contas, dinheiro): num instante as ruas, avenidas e autoestradas
ficaram desertas e o turismo escafedeu-se; os ordenados baixaram e as finanças
(pessoais e familiares) faliram; o sucesso governativo de excedente orçamental
evaporou-se num ápice; o desemprego triplicou num só mês… Não, não ‘vai ficar
tudo bem’… Dizer o resto é enganar as pessoas e pode ser considerado crime de
lesa-majestade, pois os outros merecem-nos respeito sempre e não só em maré de
crise… do vírus!
António Sílvio Couto
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