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sábado, 28 de março de 2020

Com medo natural… tenho confiança sobrenatural


Perdurará na minha memória a simbologia do Papa Francisco, na tarde de 27 de março (6.ª feira, duas semanas antes da grande sexta-feira santa): um homem só, percorreu a praça de São Pedro, no Vaticano, qual ‘bode expiatório’ (cf. Lv 16,1-23) desta Humanidade sofredora, diante de um Deus misericordioso e atento, embora, por muitos, ignorado, abandonado e desprezado. As suas palavras e gestos, o seu rosto macerado e triste, o seu silêncio contemplativo, creio que deixou a todos os crentes – muito para além do âmbito católico – uma mensagem, que deve ser descodifica.  

* Vimos um Papa, já ancião, caminhando cambaleante sobre o lajedo gasto daquela centenária praça. Ali onde tantas vezes houve multidões, via-se, agora, um homem só. É verdade que somos parte de um grande conjunto de situações, mas, na hora extrema, estaremos a sós connosco mesmos e com Deus. Cristo Jesus é o ‘cordeiro pascal’, enquanto o Papa consubstancia a figura do ‘bode expiatório’, muito para além do ‘servo de Iave’, que há de ressoar nas leituras da próxima Semana santa.  

* O texto escutado e meditado colocou-nos perante a tribulação dos discípulos, na frágil barca, no contexto do lago de Tiberíades (cf. Mc 4,35-41): Jesus, o mestre dorme e tem de ser acordado para que se evite o colapso de todos. Interpretando o fenómeno da tempestade – a da narrativa evangélica e esta que estamos ainda a viver – o Papa refere: «A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente «salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.
Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos
». 

* Por diversas vezes o Papa Francisco repetiu – qual refrão da nossa condição terrena – ‘porque tendes medo ou estais medrosos?’ Explicando algumas das razões de tantos desses medos e apontando soluções:

- Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa... Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente.
- Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros.
- Quantos pais, mães e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.
- Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. 

* O sinal profético do Papa Francisco faz-nos olhar para o Alto – como ele fez diante da imagem de um crucifixo milagroso levado da igreja de São Marcelo al Corso e do ícone de Maria ‘Salus populi romani’, venerado na Basílica de Santa Maria Maior – numa atenção aos sinais divinos, pela leitura dos mistérios humanos. À semelhança de Jesus, diante do túmulo do seu amigo Lázaro, também nós choramos os que partem, alguns deles precocemente, mas olhamos para o testemunho dos nossos guias na fé, porque mais velhos e experimentados na vida, e confiamos que Deus nos há de fazer passar desta tribulação…na paz.  

 

António Sílvio Couto

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