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sábado, 31 de dezembro de 2016

Da feira ao hospital



A poucas horas do final de 2016 – nalguns pontos da Terra já se festeja a passagem ao novo ano – tomei como resumo deste ano (quase) velho a expressão da ‘feira de gado’ – com que um governante caracterizou as conversações para a concertação social – e a romaria a um hospital privado – onde agoniza há mais de duas semanas um antigo presidente da república – enquanto milhares de pessoas enchem as urgências dos hospitais públicos…

Porque estes dois episódios? Que têm (ou podem ter) de significativo para o ano que termina? Como poderemos encontrar resumido o ano de 2016 em questões tão simples e talvez passageiras? Que país está retratado naqueles episódios que não possa estar noutros mais relevantes? 

= Antes de mais a conversa privada do dito ministro que classificou as negociações dos ‘parceiros sociais’ (entidades patronais e sindicais) com o governo como uma espécie de feira de gado, onde se vai regateando os preços até se chegar ao contento entre compradores, tem tanto de simplória, quanto de funesta, pois para muita gente poderá ter sido um mundo (rural) que desconheciam, mas de que o governante parece ter experiência, ao menos, de ouvido… e ainda que para umas tantas pessoas – que deviam ter mais respeito pelos outros – não passamos de ‘gado’, a vender/comprar, a submeter aos preços que se deseja e, possivelmente, sem a racionalidade capaz de se revoltar…

As desculpas – aceites pela maior parte dos envolvidos – são de muito não gosto e a roçar o indigno de quem, noutras circunstâncias, fez com que um outro governante tivesse de se demitir por gestos taurinos inadvertidos… Os critérios mudam conforme as vontades? Os sinais de poder fazem com que uns sejam castigados e outros ilibados?  

= A romaria ao hospital privado de eminentes figuras duma parte da nação deixa-nos um certo amargo de consciência, pois para uns defende-se o (democrático) ‘serviço nacional de saúde’, enquanto outros podem usufruir das regalias privativas – diga-se que todos deviam poder usar sem exclusão – a todo o tempo. Com efeito, estas coisas do ‘estado social’ servem para nivelar pelos pés o que devia ser elevado na qualidade sem ser preciso defender tudo e o seu contrário, desde que possamos dar a impressão que todos têm direito, mas só uns tantos participam… 

= É este o país que temos e que, em 2016, se pretendeu fazer mais democrático com ganhos de melhores ordenados, com reversão de direitos, com regalias repostas, com feriados revistos, com satisfação de promotores da reivindicação, com alguma paz social, com contas públicas mais ‘acertadas’ (os truques serão descobertos mais tarde), com bom desempenho dos ordenados… embora a economia não cresça, o ganho tenha sido – nas palavras do chefe do governo – poucochinho, as empresas continuam em dificuldade…mas o povo pode fazer festa, divertir-se cá dentro e lá por fora… 

= Este ano de 2016 foi memorável para as cores do futebol, do hóquei em patins, do atletismo; para as conquistas do novo secretário-geral do ONU; para os resultados económicos do turismo… viveu-se um tempo dalguma serenidade social, embora numa espécie de paz podre, onde mais do que a harmonia reina a desconfiança e se sente – qual espada de Dâmocles – a incerteza do terrorismo em qualquer parte e em todo o lugar… Até quando iremos estar, por cá, a salvo?  

= De facto, entre a feira e o hospital, vivemos num tempo e num lugar, onde se vai desenrolando uma mentalidade de consumismo, onde cada um se tem vindo a tornar mais egoísta, onde a família está sob ameaça constante, onde os valores da vida e da ética parecem ser mais armas de arremesso do que confluência cultural de todos e com todos.  

Já agora, a quem nos costuma ler: desculpem qualquer coisa que possa ter melindrado, mas escrever é expor-se e correr o risco de incomodar… A bênção de Deus no novo ano.      

 

António Sílvio Couto



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