Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Segurança versus liberdade? – Nova confrontação

 

O equilíbrio entre estas duas forças, ideais ou valores – segurança e liberdade – torna-se, por vezes, de difícil conjugação até porque uma e outra quase se têm tornado antíteses político-ideológicas: a segurança conotada com as forças (ditas) de direita e a liberdade mais aplaudida pela (rotulada) esquerda. No entanto, de forma regular são colocadas em confronto como se uma tenha de ter precedência sobre a outra e não sejam conciliáveis no seu antagonismo subliminar.

1. Quando é realizado algum serviço mais musculado para afirmar a segurança logo emergem os defensores da liberdade para que esta não possa ser ofendida na sua ínclita demonstração ética, sobretudo se for republicana. Com efeito, os mesmos paladinos da exaltação da liberdade tornam-se beneficiários da segurança para que a liberdade não seja ofendida nem beliscada. Pior é quando esses intrépidos mentores da liberdade se esquecem que foram alguns dos maiores securitários do Estado que suspenderam a liberdade para prosseguirem os seus intentos ditatoriais… Será sempre de trazer à memória os acontecimentos dos regimes alicerçados na ideologia marxista-leninista-trotskista, como no ex-bloco de leste europeu (até 1989), nalguns países latino-americanos (ainda em vigor) ou mesmo em certos regimes do extremo oriente: a liberdade foi subjugada pela segurança estatal…



2. Efetivamente a liberdade é uma das marcas essenciais da condição humana, tão preciosa que corre o risco de ser mais apreciada quando dela somos privados, tanto pessoal como coletivamente. No entanto, este valor não pode – como tantas vezes acontece – ser absolutizado e tornado como um critério individualista. De facto, temos assistido a uma exaltação quase doentia da liberdade, onde parece que cada um se torna ‘rei’ do seu mundo, fazendo vassalos os que gravitam à sua volta, quais borboletas em volta da luz incandescente.



3. Nota-se, em situações mais do que seria desejável, que as pessoas se consideram intocáveis nos seus direitos e pouco atentas ou quase negligentes quanto aos seus deveres para com os outros. Um exemplo meramente factual é o respeito (ou não) pelo silêncio na convivência de moradores/vizinhos: de uma forma quase rural há quem se ache no direito de impor as suas músicas e gostos, sem cuidar em ter atenção àqueles que vivem a seu lado… Certos conflitos de vizinhança poder-se-iam evitar se cada um tivesse para com os que ocupam os espaços contíguos à sua residência. Casos há que a própria ‘habitação social’ precisaria de melhor processo de integração de quantos, sem disso terem culpa nem o pedirem passaram, a viver sob o mesmo teto, isto é, no mesmo prédio…



4. De pouco valerá a liberdade usufruída se não houver segurança, se vivermos na incerteza em não podermos estar sem preocupações para com quem nos cruzamos e com quem temos de fazer as nossas tarefas quotidianas ou excecionais. Aquilo que se considera como a segurança de pessoas e bens é um valor também e deve ser vivida e sentida numa sociedade bem organizada ou estruturada. Perante riscos e perigos precisamos de ter a certeza de que somos respeitados todos, sem exceção. Por isso, cheira a populismo barato e demagógico defender uma liberdade sem segurança e uma segurança sem liberdade: uma e outra são o equilíbrio de sociedades alicerçadas na sã convivência e correta harmonia entre todos.



5. «A liberdade é um tesouro que só é verdadeiramente apreciado quando o perdemos. Para muitos de nós, habituados a viver em liberdade, muitas vezes parece mais um direito adquirido do que um dom e uma herança a ser preservada. Quantos desentendimentos em torno do tema da liberdade, e quantas visões diferentes se confrontaram ao longo dos séculos! (…) Para sermos verdadeiramente livres, precisamos não só de nos conhecer a nós mesmos, a nível psicológico, mas sobretudo de sermos nós mesmos verdade, a um nível mais profundo… A liberdade deve inquietar-nos, deve continuamente fazer-nos perguntas, para que possamos ir cada vez mais a fundo no que realmente somos» (Papa Francisco, ‘Audiência geral’, 6 de outubro de 2021). Seremos seguramente livres?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Família: interesses em disputa ou em contradição?

 

De há uns tempos a esta parte vemos que inúmeras intervenções trouxeram o tema da família para a discussão: desde partidos políticos, passando por agremiações mais ou menos culturais, sem esquecermos lóbis de teor ético-moral e outras expressões de pensamento quase avesso à ideia tradicional de família.

Creio que será útil fazer uma pesquisa sobre o que o dizem os partidos políticos sobre o tema nos seus programas.

* Partido Socialista

O PS preconiza um Estado que na sua relação com a família, se paute pelo respeito e salvaguarda da sua autonomia, intimidade e privacidade. Este partido, através do seu programa, reconhece a subsidariedade da intervenção do Estado na família, ao mesmo tempo que insiste, na defesa e proteção dos indivíduos e da família da intromissão abusiva e excessiva do Estado. Este partido insiste, preferencialmente, nos grupos sociais das crianças, dos jovens, das mulheres e dos idosos, e não tanto na família. E, os tipos de famílias que prendem mais a atenção do PS são, precisamente, aquelas que podem ser alvo de maiores carências sócio-económicas (como por exemplo, famílias numerosas, famílias com fracos recursos financeiros, famílias monoparentais, famílias com filhos deficientes), com vista à realização dos valores da igualdade e fraternidade e, mais concretamente, à extensão da ideia democrática a todas as áreas da vida social e, neste caso específico, às famílias socialmente mais desprotegidas.

* Partido comunista

O PCP, no seu programa, não trata a família como objeto em si, mas apenas se refere a ela, de uma forma indireta e dispersa por certas medidas sectoriais. Foi, o que sucedeu a propósito do «direito à habitação dos cidadãos e das famílias», do reconhecimento da importância do associativismo familiar, e a propósito dos emigrantes e dos deficientes. Não é tanto a família em si que é alvo de uma atenção e tratamento específico, mas alguns dos seus membros, e neste caso, os emigrantes e os deficientes.

* Partido Social-democrata

Para o PSD a família é o primeiro e natural espaço de realização e desenvolvimento da pessoa humana, a primeira experiência de vida relacional e afetiva, de transmissão de valores éticos, sociais e culturais. Por isso a considera a célula essencial da sociedade, o repositório dos seus valores e tradições e a primeira escola da solidariedade entre gerações. O PSD reafirma a necessidade do Estado reconhecer e salvaguardar a função primordial da família na sociedade, garantindo-se a efetividade do exercício dos seus direitos.

* Chega

O Chega coloca a família no âmago da sua conceção de sociedade. É a célula base que garante a preservação, renovação e socialização da ordem moral e da cultura cívica, daí ser a família que prepara a estabilidade social e política, assim como a realização e prosperidade individual e coletiva.

O Chega propõe a criação do Ministério da Família. Constitui função indeclinável do Estado recolocar a família, e o seu papel na educação dos filhos, no lugar central que é o seu.

O Chega respeita outros modelos diferentes de partilha de vida comum, porém considera a família natural, baseada na relação íntima entre uma mulher e um homem, uma realidade psicossociológica e socioeconómica anterior ao Estado, historicamente estável e humanamente insubstituível. Nela é transmitida a vida e todo um conjunto de equilíbrios afetivos, emotivos e comportamentais, assim como de saberes, tradições e património que sustentam a dignidade e prosperidade dos indivíduos e dos povos.

Prima inter pares das instituições, a família deve ter na autoridade dos pais sobre os filhos um referencial de disciplina, naturalmente conjugado com o sistema de valores e direitos fundamentais da sociedade.

O Chega procurará convergir com os países europeus no que reporta a prestações familiares, direitos laborais e demais benefícios e incentivos que promovam o aumento da natalidade, nos casos em que ambos os pais tenham naturalidade e nacionalidade portuguesas e sejam oficialmente residentes em Portugal.

* Iniciativa Liberal

As escolhas e acontecimentos da vida levam a caminhos diferentes e a resultados também diferentes. O que cada indivíduo constrói ao longo da sua vida, para si e para os seus, é único e irrepetível. Pessoas livres não são iguais e pessoas iguais não são livres.

A Iniciativa Liberal entende que a liberdade está intrinsecamente associada a responsabilidade. A autonomia política dos indivíduos, necessária numa sociedade livre, exige que as pessoas livres sejam responsáveis, e responsabilizadas, pelos seus atos.

A Iniciativa Liberal deseja uma sociedade capaz de atender às necessidades mais básicas da comunidade, como a segurança, a justiça e a boa administração pública, garantindo aos cidadãos o acesso a uma rede de proteção social e a sistemas de saúde e de educação de qualidade, em que todos, sem exceção, possam escolher livremente aqueles em quem confiam para prestar, a si e às suas famílias, esses serviços.

= Estas visões partidárias deixam a manifesto que para muitos a família não é algo essencial como constituição do núcleo da sociedade. Alguns combatem mesmo a noção judaico-cristã do conceito de família, como célula da sociedade e alicerçada no conceito da união estável entre um homem e uma mulher. Bastará recordar dois livros editados este ano – por sinal pela mesma chancela – sobre o tema: “Identidade e Família – Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade” (publicado em março) e “Reflexões Sobre a Liberdade – Identidades e Famílias”: uma visão múltipla do futuro do país (saído em setembro). Pena é que uns não respeitem os outros, mesmo que apresentando e defendendo propostas diferentes – e porque não – díspares ou mesmo disparatadas!
= A família não pode ser usada segundo os interesses nem tão pouco querendo pensar como se vive e não se viva como se pensa!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

‘Como é que te sentes, hoje?’

 

Nos dias prévios ao Natal surgiu mais uma daquelas frases-feitas, que tanto podem ser algo revelador do vazio, como, se quisermos, dar-lhe conteúdo, no nosso caso cristão. Depois de dizer o nome a quem se dirige, pergunta-se: ‘como te sentes, hoje? – Neste Natal oferece uma pergunta sincera a alguém’…

De facto, como vivência do Natal e também como desafio para o novo ano (2025 – jubilar cristão), esta pergunta e a consequente resposta pode transmitir-nos uma mensagem para além de banalidades e de chavões ao ritmo das redes sociais… teoricamente pode conter, em embrião, projetos e expetativas, que devemos gerir com alegria, sinceridade e confiança.

1. ‘Como te sentes’ por viver este Natal – de coração aberto à mensagem de Jesus ou ocupado com milhentas coisas, atafulhado de preocupações materialistas? Preparado para dar ou mais na ânsia de receber? De braços abertos, como a normal representação da imagem do Menino Jesus, ou de braços cruzados, levando a pensar que estás sem disponibilidade para acolher?

De facto, esta singela pergunta – ‘Como é que te sentes, hoje’ poderá ser um bom motivo para iniciar uma conversa com alguém conhecido ou sem grande proximidade. Efetivamente por entre as várias consequências da recente pandemia fomos constatando que as pessoas se foram fechando aos outros e particularmente ao desconhecido.

O medo como que suplantou muita da normalidade das relações das pessoas de umas com as outras. Isso mesmo quis deixar na proposta de leitura, de interpelação e de interrogação ao tempo da covid-19, no livro – ‘Tempo de reajustar a rota da vida’, acabado de ser dado à estampa. Em mais de trezentas páginas coligi cerca de cem crónicas, escritas entre março de 2020 e maio de 2023. Mais do que uma razoável oferta de presente neste Natal poderá servir-nos a todos de matéria de exame de consciência quanto às mudanças (quase) inconscientes que se deram nas nossas vida, tanto pessoais como familiares e sociais/eclesiais.

2. Por outro lado, tendo em vista o novo ano que se aproxima, esta pergunta – ‘Como te sentes’ – pode servir para questionarmos como queremos celebrar e viver o Novo Ano. De entre tantas questões ouso colocar algumas: tens esperança ou andas desanimado e triste, mesmo que possa haver festejos estridentes e calorosos? O novo ano tem a marca da esperança, podendo nortear a nossa vida – pessoal, familiar e social/eclesial? Estamos capazes de darmos (explícita e claramente) as razões da nossa esperança, a começar pelos que nos são mais próximos? Não haverá ao pé de nós quem necessite de escutar aquela pergunta – ‘como te sentes, hoje’ – prestando interesse àqueles com quem convivemos?

De facto, o ano jubilar está orientado para centrarmos a nossa atenção no tema da esperança, tanto como virtude teologal (vinda de Deus) como enquanto virtude, traduzindo na vida esse sinal divino de sermos proposta de entusiasmo – veja-se o sentido original do termo: em Deus – e na confiança, por entre ‘as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje’ – como lemos na abertura da constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ a Igreja no mundo atual.

Efetivamente seria uma boa forma de retomar as linhas-força do Concílio Vaticano II, quase sessenta anos decorridos, servindo-nos dos temas (abrangentes, incisivos e necessários) então apresentados, discutidos e aprovados.

3. Retomando os desafios da pergunta – ‘Como te sentes, hoje’ – poderemos enfrentar com mais sinodalidade a dinâmica – do Espírito de Deus e que conduz a vida da Igreja – de sermos investidos na difusão da civilização da esperança, alicerçada em Jesus, o nosso Salvador: Ele trouxe esperança ao mundo e nós somos os seus promotores na simplicidade de vida e pelo testemunho sincero. De facto, a frase que complementa a tal pergunta personalizada diz: ‘neste Natal oferece uma pergunta sincera a alguém’. Os de cultura anglo-saxónica ao saudarem alguém (conhecido ou não) dizem: how are you? (como estás?)… isso implica interesse pelo outro e pode desencadear conversa com ou sem interesse… Sigamos os exemplos e atendamos as respostas!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Rever a história (pessoal, familiar e social) à luz da genealogia de Jesus

No primeiro dia da ‘novena do Natal’ (17 de dezembro) a liturgia da palavra na missa propõe-nos a leitura do evangelho segundo São Mateus da genealogia de Jesus (Mt 1,1-17), numa interpretação de toda a história do povo de Israel. Por seu turno, nós podemos encontrar nesta genealogia algumas das etapas da nossa própria caminhada pessoal, familiar e social…

1. Citamos uma análise do Papa Bento XVI sobre esta passagem da genealogia de Jesus: «A genealogia, em Mateus, é uma genealogia dos varões; nela, porém, antes de Maria – com que termina a genealogia – mencionam-se quatro mulheres: Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias... As quatro mulheres teriam sido pecadoras (...) A genealogia termina com uma mulher - Maria - que, na realidade, constitui um novo início e relativiza a genealogia inteira (...) A genealogia mantém a sua importância: José é juridicamente o pai de Jesus. Por meio dele, Jesus pertence segundo a Lei, ‘legalmente’, à tribo de David» – Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré - a infância de Jesus, Cascais, Principia, 2012, pp. 13-14. Quando seríamos tentados – na nossa visão moralista – a considerar que os evangelistas fariam uma leitura edificante dos antecedentes de Jesus, vemos que de entre eles há quem não seja tão ‘santo’ assim ou, pelo contrário, manifestam as marcas do pecado – Tamar – nora de Jacob que enganou o filho deste; Raab era prostituta; Rute – moabita (logo fora do povo de Israel) e David que cometeu adultério com a tal mulher de Urias. Temos que certas manchas morais na genealogia de Jesus fariam questionar aqueles/aquelas de quem é descendente segundo a condição humana.

2. Aqui pode e deve entrar a nossa – a de cada um e segundo a sua sensibilidade religiosa e espiritual – leitura e interpretação da história da minha família… Creio não ser exagerado considerar que não há nenhuma família que seja (ou foi) sempre tão certinha que nunca houve qualquer desvio moral, sentimental ou de confusão: quem disser que nada aconteceu na sua família que possa manchar a ‘sua’ história, correrá o risco de ser considerado mentiroso ou de faltar no mínimo à verdade. Todos temos pequenas ou grandes lacunas, que, afinal, fazem com que sejamos aquilo que somos hoje. Certamente que certos ‘erros’ contribuíram para que sejamos aquilo que somos, hoje. Depreciar o nosso passado será como que renegar a nossa identidade, mesmo que isso seja de complicada gestão ou mesmo digestão.

3. Diante de tudo isto se impõe a assunção de todo um processo psicológico e mesmo espiritual de enquadramento assumido para que possa haver harmonia na nossa identidade. Mesmo que tal nos possa ser complicado, será aí que poderemos perceber quem somos, de onde vimos e para onde vamos. Com efeito, a nossa história é muito mais do que idílica, pois, de um modo simples e humilde, compreenderemos também os outros e tudo quanto lhes possa ter acontecido. Quantas vezes são os possíveis percalços dos nossos antepassados que ajudam a explicar quem somos e o modo como nos comportamos. Não são só as heranças económicas que os nossos antepassados nos transmitem, mas também tanta outra coisa que nos é dada pela confluência sanguínea, psicológica e mesmo moral/espiritual.

4. Quantos dos genes mais recônditos nos podem ser comunicados e nem sempre os conhecemos, reconhecemos e até aceitamos. A designada ‘herança genética’ é bem mais funda do que as semelhanças físicas, mas compreende um todo de código genético que nem sempre explicamos, mesmo nas situações mais complexas. Embora possa haver mutações resultantes das condições ambientais mais ou menos adversas versus concordantes, a nossa hereditariedade ultrapassa as barreiras que os nossos conceitos pretensamente culturais potenciam ou valorizam.

5. Se na genealogia de Jesus não foi limpo o que era considerado menos agradável quem somos nós para rejeitar a nossa história familiar, com as implicações sociais inerentes? Neste ano jubilar da condição cristã/católica precisamos de purificar a memória para sermos quem somos sem medos nem altivez…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Bênção dos bambinelli

“Um coração de Luz” é o tema deste ano do tradicional evento da bênção dos bambinelli (‘meninos’ Jesus), que será realizado no domingo, 22 de dezembro, e envolverá crianças e jovens de oratórios e paróquias de Roma. Os grupos, juntamente com os animadores do Centro 'Oratori Romani', participarão primeiro da celebração presidida pelo cardeal Gambetti na Basílica Vaticana e depois reunir-se-ão na Praça São Pedro para o Angelus com a bênção do Papa.

O encontro para oratórios, grupos de jovens, paróquias e famílias de Roma representa uma tradição de longa data que remonta a 1969, quando Paulo VI concedeu pela primeira vez a bênção solene às estatuetas trazidas pelas crianças no dia 21 de dezembro.

A Bênção dos bambinelli é promovida e organizada pelo Centro Oratori Romani, uma associação de fiéis fundada para a divulgação e promoção do trabalho pastoral oratoriano em Roma. Essa tradição se difundiu amplamente nos últimos anos na Itália e no exterior (Estados Unidos, Filipinas, Inglaterra, Irlanda, América do Sul e muitos outros), envolvendo centenas de comunidades e dioceses onde bispos e sacerdotes optaram por dedicar um domingo do Advento ao encontro com as ‘imagens’ do Menino Jesus e ao acolhimento das famílias, animadores e religiosos da Igreja local. “Este ano a expectativa se multiplicou, o convite é para estarmos ainda mais vigilantes e prontos para acolher um Natal 'especial'”, realçou o presidente do Centro dos oratórios de Roma.

= Contraste ou confronto?

Neste tempo consumista em que se converteu o Natal e quanto a ele se refere – onde pontifica a figura bizarra do ‘pai natal’ – aceitar este desafio da bênção dos ‘bambinelli’ é, antes de tudo, um compromisso em não deixar esquecer, senão mesmo morrer, a referência ao festejado no Natal.

Algo vai mal no processo educativo em geral e específico para com as crianças mais novas, pois, muitas das crianças não sabem nem conhecem a história do Natal e já nem na família isso é transmitido. Com que habilidade foi banida a referência a Jesus e como os nossos mais novos estão longe da linguagem e do comportamento em função de Jesus, o festejado no Natal.

As festinhas (não é termo depreciativo) da catequese ainda poderão lançar algumas sementes para que Jesus tenha centralidade no Natal, mas o grosso das crianças está longe daquilo que é o Natal cristão.

Precisamos de lançar mão de todos os recursos disponíveis para que o espírito do Natal continue a ser espalhado, vivido e sentido por todos e por cada um de nós.



António Sílvio Couto

Porque não votarei no almirante

 


Estamos a cerca de catorze meses das eleições presidenciais e já vão sendo lançados para a fogueira inquisitorial diversos candidatos ao sufrágio. Ainda nenhum se assumiu como tal e os que são propostos deixam muito a desejar – sobretudo pela falta de conhecimento que temos deles sobre os assuntos que envolvem o desempenho do mais alto cargo da Nação –, criando-se um longo e fastidioso vazio de reflexão e de tomada de posição até à escolha definitiva. De entre eles se vem a destacar o almirante das vacinas…

1. É verdade que lhe devemos muito pelo trabalho desenvolvido nas horas de maior aflição por ocasião da covid-19. De resto as suas tarefas têm sido no âmbito castrense e concretamente no ramo da marinha. Nos tempos mais recentes assumiu o comando geral desta área das forças armadas. Eivado da disciplina militar têm tentado seduzir o público em geral com o transpor para o resto da sociedade a competência até agora exercida. Prestes a terminar o seu tempo de missão colocaram-no – nas tendenciosas sondagens, ditas de independentes – como o melhor no ranking de putativos candidatos à candidatura…

2. Depois de quatro presidentes civis o que significaria voltarmos ao recurso a um militar para termos novo inquilino de Belém? Seria falência das capacidades civis ou uma reprogramação mais de meio século decorrido sobre a revolução de abril? Onde andam os paladinos da liberdade para que se tenha de recorrer a alguém de farda – não cultivo nem abjuro tais indumentárias – em ordem a sermos guiados nos nossos destinos coletivos? Não está na hora de termos uma mulher na presidência? Com tantas quotas e outras tantas cotas, não poderemos ter alguém que olhe o cargo de PR com outra visão e novo dinamismo?

3. Embora possam surgir pequenos entertainers dos vários campos ideológicos falta quem queira fazer do alto serviço na Presidência da República um espaço salutar de cidadania e não um areópago de vaidades como foram os mandatos do atual inquilino. Quem muito fala, pouco acerta – diz o adágio popular. Foi isso que presenciamos nestes anos complicados para o país e no mundo. Não precisamos de munias ambulantes nem de papagaios irritantes, mas de alguém que saiba o que diz e que diga só aquilo de que sabe…

4. Eis algumas das razões pelas quais não gostaria que o almirante seja candidato e se o for não terá o meu voto (só é um e nada mais): mais do que uma figura de representatividade precisamos de alguém que ajude a crescer na cidadania com valores morais e éticos assumidos e sem disfarce; mais do que uma figura que se distinguiu pelo passado (com farda e em atitude militar) precisamos de alguém que nos traga propostas para além do circuito da capital; mais do que uma figura que se faça respeitar pela farda que enverga (ou despiu) que nos una na prossecução da coesão do todo nacional e não só nas festas e romarias de ocasião; mais do que uma figura que nos vê de cima para baixo precisamos de alguém que caminhe com ponderação e humildade entre os seus concidadãos…

5. Porque acredito que ainda surgirão candidatos e propostas que abram horizontes e linhas de reconciliação de todos os portugueses, não espero votar no almirante, mas num civil (homem ou mulher) de formação política sensata, audaz e com perspectivas de futuro… Os sondados (incluídos nas sondagens) parece que são para queimar!



António Sílvio Couto

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Éramos felizes e não sabíamos!

 

Por estes dias ouvimos esta expressão – ‘éramos felizes e não sabíamos’ – do mais alto dignitário da Nação, numa abordagem, como tantas outras, sobre uma situação que teve de explicitar, na medida em que se referiria a um primeiro ministro já fora de funções e de quem aceitou a demissão há cerca de um ano atrás... Tais palavras soaram mais a exame de consciência do que a avaliação da governança e seus tentáculos.

1. Tentemos discernir o significado desta expressão a partir do contexto sócio-político atual, atendendo aos personagens que então eram os atores. Com efeito, o chefe de Estado referia-se ao tempo em que coabitou com António Costa, agora presidente do Conselho Europeu. Nas palavras do Presidente-comentador: ‘dizia muitas vezes a um governante com o qual partilhei quase oito anos de experiência inesquecível: um dia [se] reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos... Era tudo relativo, era uma felicidade relativa, mas, comparando com o que vinha por aí, era uma felicidade’.

2. Não dá a impressão que o termo ‘felicidade’ está aqui usado num sentido tão lato, que quase se confunde com uma certa tolerância e bonomia simplista? Até onde irá o conceito de ‘felicidade’, se aquilo que vimos e sentimos, à época, pareceu mais uma espécie de passa-culpas, onde ninguém assumiu nada? Não será que nem tudo dito nem feito para que a crise posterior àqueles acontecimentos tenha sido mais forjada do que real? Sem conjeturar sobre as afirmações mais recentes do PR, nem tudo vai bem no reino-do-faz-de-conta...

3. Esta questão de relacionamento político-afetivo daqueles que nos governam tem de ser cada vez mais um ponto de referência para todos. Com efeito, certas quezílias e intrigas nos espaços de discussão parecem não passar de um certo teatro – com atores de classe pouco recomendável, na forma e pelo conteúdo – e quase dando a entender que as palavras usadas fazem parte de um guião escrito por outros que não aqueles que as proferem. De facto, só quem não meça as palavras acreditará que aquilo que alguns ‘políticos’ dizem não soa a coisa sem sentido e sem nexo, pois a luta ideológica não pode fazer das pessoas um quê de irracional sem coração nem sentimentos básicos.

4. Por ocasião do centenário de nascimento de um dos considerados ‘pais’ da democracia (Mário Soares), ficou bem visível como nos falta qualidade e têmpera na luta por ideais. Hoje – fruto das múltiplas circunstâncias – podemos constatar a ínfima qualidade dos que fazem a vida pública – política, económica, cultural, religiosa e mesmo ética. Recordando certas noções básicas teremos mais chefes do que líderes, na medida em que aquele manda e este cativa para com outros fazer. Onde estão os que se norteiam por ideais e não por meras ideias sem horizonte nem desafio de subir mais alto, mais longe e mais fundo?

5. Vai mal a conexão de conceitos e a prossecução dos objetivos, na medida em que tantos do que surgem na vida pública o que pretendem é salvaguardar a sua vidinha mais ou menos barata nos custos mas cara nas consequências. Faltam-nos homens e mulheres com perfil de serviço desinteressado aos outros, com as mãos voltadas para dar e com preocupações centradas fora de si mesmos, sem tirarem proveito nem benefício daqueles que servem. Pior ainda quando vemos protegerem os seus, sejam os da família, sejam os do partido ou até aqueles a quem já devem favores. Este jogo de compadrios manifesta-se nas pequenas como nas grandes instâncias, da freguesia ao concelho, do país aos lóbis... sem esquecermos que hoje muitos destes são transversais, transnacionais e até transgénicos.

6. Coitada da felicidade que pauta as suas regras pelo contentamento circunstancial e enquanto não há problemas, pois estes são, muitas vezes, o melhor critério para aferirmos de quem vive o desinteresse das suas mazelas e cuida dos mais desprotegidos e necessitados... Qual o meu ideal de felicidade, hoje?



António Sílvio Couto

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Bênção das grávidas

 

«Senhor Deus, criador do género humano, cujo Filho, pelo poder do Espírito Santo, Se dignou nascer da Virgem Maria, para redimir e salvar os homens, libertando-os da dívida do antigo pecado, escutai com bondade as preces desta vossa serva, que humildemente Vos suplica pela saúde do filho que vai nascer, e concedei-lhe um parto feliz, para que, entrando seu filho na comunidade dos fiéis, se dedique plenamente ao vosso serviço e alcance a vida eterna».

Esta é a ‘oração de bênção da mulher antes do parto’ (grávida) que nos aparece no ritual das bênçãos da Igreja católica (n.º 228). Embora seja uma aproximação a um estado particular da mulher – não está em causa ser dentro ou fora do casamento, no contexto ou não do matrimónio – com esta bênção se pretende cuidar da vida, tanto da mãe quanto do filho/a a nascer.

Mesmo com toda a evolução dos cuidados materno-infantis, esse momento particular de dar à luz contínua sob perigo – vejam-se as notícias e dados algo dramáticos com somos confrontados continuamente –, daí recorrermos à proteção divina, com confiança e esperança… Não é da leitura popular que estar grávida ‘é estar de esperanças’?

A proposta de facultar esta bênção às que hão de ser mães é tanto oportuna quão benéfica neste tempo de aproximação e de vivência do Natal.

= Bênção em contexto familiar

No ritual das bênçãos encontramos sugestões para vários momentos da vida familiar, onde se encontra a proposta para a ‘mulher antes do parto’, bem como ‘depois do parto’. Vejamos, sucintamente, as diversas vertentes: bênção da família, bênção dos esposos (onde se incluem em particular as efemérides mais relevantes), bênção das crianças (batizadas ou não), bênção dos filhos, bênção dos noivos, bênção das pessoas idosas (sobretudo se não saem de casa)… Em todos estes aspetos podemos encontrar referência à vivência da Sagrada Família de Nazaré, como modelo e desafio para os cristãos.

= Razões para a bênção das grávidas

Num tempo algo avesso ao compromisso para com o dom da vida como que parece soar a algo de antanho esta proposta da ‘bênção das grávidas’. Pelos testemunhos presenciados posso confirmar que, em muitos casos, é preciso lançar o desafio e colocar as pessoas – mais ou menos crentes em Deus por Jesus – a olharem mais para o alto e a sentirem que n’Ele, por Ele e com Ele será mais fácil enfrentar as dificuldades na assunção de um filho, quando tantos se entretêm a dedicar o seu tempo e energias para com os animais, fechando-se ao risco do dom da vida humana.

Por estas razões transversais à vivência humana considero que a bênção das grávidas pode ser uma oportunidade de abertura a Deus, dado e comungado em vida.



António Sílvio Couto

Sinais do Natal – dispensáveis e dispensados

 

No fervilhar das coisas e loisas adstritas ao Natal vemos que há sinais que seriam perfeitamente dispensáveis e outros que foram progressivamente dispensados, daqueles observamos a proliferação de luzes e outros adereços, destes detetamos tudo quanto foi sendo ofuscado nas referências cristãs…

1. Vejamos alguns dos aspetos que seriam (serão) dispensáveis neste tempo de vivência do Natal ao final do primeiro quartel do século XXI: dizem que estamos em crise energética, mas nunca como agora encontramos tanto gasto e com propostas que parecem ser dispendiosas. Certas figuras e figurações são tão anódinas que poderiam ser usadas noutras festas quaisquer, tanto no tempo como nos lugares: estrelas e bolas, árvores e arbustos, músicas e adereços quase circenses, projetos e projetores, motivos e motivações tão insípidos que quase não dizem nada nem veiculam mensagem alguma…A ‘estrela’ é a de cinco pontas – com toda a conotação ideológica que carrega – não as de seis pontas, a ‘estrela de David’, possivelmente provocadora de sentimentos contraditórios aos da de cinco pontas… Certos ‘bichos’ que surgem em tantas das decorações seriam escusados, tal o anacronismo, dado que por cá não temos renas nem outros animais que povoam as mentes dos decoradores e publicitários no seu mundo infantil… O recurso ao ‘pai-natal’ tem tanto de abusivo, quanto de explorado pelo consumismo, esse que é fomentado, cultivado e servido em bandejas de ouro…falso. O ambiente de exaltação da comida-e-da-bebida como que denuncia um recuo na satisfação da necessidades primárias ou então um endeusamento do materialismo de vida e dos prazeres meramente biodegradáveis. Por quê e para quê tantos almoços e jantares de Natal, por estes dias: o resto do ano terá a marca que agora se pretende impingir?

2. Olhemos agora para alguns dos sinais nitidamente dispensados, mas que seriam (são) essenciais para a identidade e celebração do Natal. Desde logo as acesas luzes nem sempre apontam para a verdadeira Luz, Jesus, o salvador nascido em Belém. Pelo contrário, o culto feérico da luz como que ofusca o reconhecimento d’Ele como a Luz da vida. Talvez vale-se a pena explicar a palavra ‘natal’ (natalis) que significa nascimento…na tradição cristã mais elementar de Jesus, que se celebra a 25 de dezembro. Por isso, tudo quanto possa sair deste enquadramento será algo a roçar a manipulação dos termos e da História, mesmo que isso possa incomodar certas forças e ideologias. O pretenso feriado do ’25 de dezembro’ só tem sentido e significado porque nele celebramos o nascimento de Jesus. Não fomos nós – os cristãos – que impusemos esta data, ela é que se impôs à Humanidade, criando uma nova cultura e civilização. Denunciamos, então, o aproveitamento desta data para a fazer manipular com outros intuitos, mesmo os mais fraternos e solidários… na linha da mera filantropia mais ou menos dourada. Podem-se fazer muitas campanhas de angariação de coisas para os ‘pobres’, mas estes continuam a ser o alfinete de lapela que enfeita tantos dos nossos contemporâneos… Serei também desses devotos do Natal sem Cristo?

3. Há expressões tão bizarras quão desconexas, tanto na linguagem como no conteúdo: o natal é quando o homem quiser… nessa dos eflúvios revolucionários que varreram certas mentes há décadas. O Natal é e sempre será a referência ao festejado no Natal, Jesus. Quem não entende (ou não é capaz) tal linguagem precisará de ser educado para o nível histórico e a leitura que se faz desse acontecimento. Consideramos ridículo que um tal caudilho sul-americano tenha decretado a celebração do Natal no início de outubro, mas continuamos a comportar-nos como se o Natal possa ser usufruído quando muito (ou nada) convém…

4. Neste processo de recristianização – a que o Papa João Paulo II chamou, já há quatro décadas, de ‘nova evangelização’ – da Europa precisamos de ter mais sinais de compromisso do que de elencarmos diagnósticos que nada mudam porque eivados de lições e não de participação humilde e fraterna. Não deixemos que o Natal seja sobreposto por medidas de consumismo e não de conversão a Deus e aos outros. Cada ano é diferente. Assim o vivamos nesta véspera do ano Jubilar de 2025!



António Sílvio Couto

sábado, 7 de dezembro de 2024

‘Tempo de reajustar a rota da vida’

 

No próximo dia 21 (sábado), às 16 horas, vai ser feito o lançamento e a apresentação, no salão paroquial das Marinhas, Esposende, do mais recente livro de António Sílvio Couto, intitulado - ‘Tempo de reajustar a rota da vida - Leituras, interpelações e interrogações ao tempo da Covid-19’. Ao ato estará presente o arcebispo emérito de Braga, D. Jorge Ortiga. Mais uma vez esta publicação tem a chancela da Paulinas Editora.

Aqui se apresenta a compilação de textos (97) escritos entre março de 2020 e maio de 2023, ao longo de mais de três centenas páginas, num ritmo de apreciação ao tempo daquilo que nos fez viver e - seria bom que acontecesse - nos fez aprender a estar de forma diferente, reajustando a rota da nossa vida.

No prefácio de Rosas de Assis faz-se uma breve apreciação do texto agora publicado, até para que não esqueçamos que tudo isto aconteceu há escassos dois-três anos de distância.

«Recordar ou reviver os anos de Covid, refletir sobre causas, consequências, medidas de prevenção, máscaras, atitudes públicas, recomendações oficiais de higiene e orientações oferecidas nesses tempos de pandemia, numa dimensão diacrónica, ao longo de dois anos (2020-2023), eis a sinopse e resumo desta obra que nos oferece o autor.

(...) Uma bela reflexão de antropologia cristã pode ser a grande mensagem desta obra com a consciência não do medo, que nos aterroriza, mas do barro que todos somos, por vezes em bicos de pés, nem sempre bem apoiados no fascínio e beleza deste mundo, pela juventude e sedução dos nossos sonhos. Tudo é muito efémero, passageiro, volátil; temos sonhos de águias, com lanços de «capoeira» a viver um problema que é de todos e de cada um, sem alienação, formando uma corrente de solidariedade e de altruísmo. Chorando o luto por alguns, sentimo-nos necessitados de conversão ou inversão de muitos dos nossos valores, atitudes, de heroísmos ou covardias em subterfúgios de habilidades, emotividade, procurando mais soluções do que problemas pessoais ou comunitários numa fase posterior. Mas – como diz António Sílvio – nesta cultura do efémero, dá-se a impressão que se mete a cabeça na areia como a avestruz, cantando e rindo como palhaços de circo, abstraindo-nos do que vai acontecendo, ou ignorando as tempestades, pela alienação que nos transmitem, trocando a nuvem por Jânus, nos ludibriando nos efeitos e nos afetos»...

Divido em consonância com os anos em que decorreu o Covid-19 este texto poderá ser útil para não esquecermos o que vivemos e podermos ainda reajustar a rota da nossa vida...naquilo que nos é dado viver.



Asc

Subsídios a ‘sinais exteriores de riqueza’?

 

Causou grande alarido a posição de uma autarca da zona de Santarém quando disse que a sua autarquia ia passar a avaliar os sinais exteriores de riqueza das famílias que se candidatem à atribuição de subsídios escolares. A questão tem tanto de simples quanto de normal, mas deixou em polvorosa elementos do seu partido e como que se submeteu a um labéu popular... de tantos outros, mesmo autarcas.

1. Vejamos, citando, as palavras da senhora autarca, proferidas num reunião de câmara e que serão submetidas a votação da assembleia municipal ainda neste mês de dezembro. «Quem vai avaliar é a autarquia. Os sinais exteriores de riqueza são sinais visíveis, saltam à vista, são situações que são conhecidas de toda a gente. Por exemplo, uma família que tenha um carro de alta cilindrada, que custa 30 ou 40 mil euros (...) ou um telemóvel que custa mais de mil euros. Há critérios que a lei impõe e há critérios que eu determino. O município determina que nestas situações devem ser valorados estes sinais... Há famílias que têm sinais de riqueza muito evidentes, que depois ocultam nas declarações de rendimentos».

2. Por que será que se geraram tantas e tão díspares reações? O que a senhora disse é evidente, pois os subsídios são para quem precisa e não para quem engana, o público e/ou as finanças... Será que alguns dos reacionários (isto é, os que reagiram) se viram denunciados num comportamento a descondizer da teoria social que propagam? Quem não conhece casos destes e comenta, mas se cala? De conhecimento pessoal, me dá alguma repulsa a estes ‘ofendidos’, mas nitidamente prevaricadores...

3. Neste contexto convém lembrar o ‘nosso’ ditado popular: quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem! Com efeito, torna-se abusivo e mesmo provocador que vejamos pessoas que ostentam ‘sinais exteriores de riqueza’, como carros, casas, adereços e vestuário, jantaradas, tendo uma profissão de razoável salário, mas aquilo que mostram – ou será que ostentam sem consistência? – não se coaduna com os proveitos-e-ganhos. E pior que isso: fazem-nos de forma desavergonhada ou querendo levar-nos a acreditar que acreditam naquilo que exibem como sendo autêntico e sincero.

4. Efetivamente falta-nos uma educação e verdadeira consciência para a participação nos destinos comuns, mesmo através do pagamento correto e honesto dos impostos, que nos são devidos. Esta mentalidade algo portuguesa de fugir aos impostos, tentando fazer justiça pelas próprias mãos, gera que vivamos num ambiente de desconfiança para com tudo e em relação a todos, incluindo o Estado. Com efeito, não se vai construir um país ou uma sociedade onde se vive no desleixo ou no engano, senão explícito ao menos tácito. Poderá ser neste aspeto tão simples quão perigoso que flutuam muitos dos ‘sinais exteriores de riqueza’, na medida em que muitas pessoas pensam enganar os outros, mas não conseguem sempre, da forma articulada e de modo consistente. Mais um ditado popular se pode aqui rifonar: a verdade é o como o azeite: vem sempre ao de cima!

5. Quando se descobre o desfasamento entre o que se mostra e aquilo que verdadeiramente se é, já foram estruturadas muitas forma de ser e de estar, criando, na hora da denúncia ou da descoberta, o tal escândalo, que parece só o próprio não admitir. Neste aspeto somos um país/sociedade de fachada, que facilmente se desmorona, se atendermos com cuidado aos sinais que suportam tal comportamento. Mais ainda tudo se cultiva como se fosse verdadeiro, embora todos conheçamos a mentira em que laboramos.

6. Recordamos novamente o aforismo: só no dicionário é que sucesso aparece antes de trabalho. Por isso, cultivemos o trabalho e poderemos ter algum sucesso...



António Sílvio Couto

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Novas heresias no futebol


Foi notícia por estes dias: um jogador de uma equipa inglesa pode ser sancionado pela simples razão de ter escrito na braçadeira de capitão – que tinha as cores lgbtq+ (arco-íris) – a frase ‘eu amo Jesus’. Isso foi considerada uma infração aos regulamentos desportivos em que nada pode haver no equipamento que seja alusivo a slogans, declarações ou imagens políticas, religiosas ou pessoais.

1. Rezam assim os tais regulamentos: «a incorporação em qualquer peça de vestuário (...) de qualquer mensagem política ou religiosa» é proibida e «podem ser tomadas medidas disciplinares» por «qualquer infração a estes regulamentos». De referir que um outro jogador, este de crença muçulmana se recusou a usar a braçadeira de capitão com as cores do lóbi em promoção, preferindo antes uma braçadeira de cor preta.

2. É sintomático que vivamos numa sanha antirreligiosa crescente, impondo uma outra visão e mentalidade que se reclama de abrangente, embora – como em tudo – nada seja inclusão quando se pretende fazer exclusivo. Estes mentores do ‘arco-íris’ ainda não se aperceberam que a saída do armário não pode fazer deles reis/rainhas de quem não pensa nem age como eles? Esta onda lgtb não criará o seu auto-descrédito com protecionismos desta configuração? Até onde irá a complacência de quem tem de aturar que todos afinem pelo diapasão dessa diferença: não estarão a ostracizar quem não faz parte da corporação? Então, serão criados novos excluídos pela simples razão de que não fazem parte da pretensa ‘maioria’… lgtb.

3. A ideologia de género atingiu os picos da promoção, da difusão e, consequentemente, da imposição. Quem antes era perseguido – pelo menos em certos meios e culturas – agora assume-se como perseguidor com tiques fundamentalistas mais básicos, como aqueles (ou piores) que atribuíam aos outros. Agora não ser adepto desta onda, torna-se algo perigoso e obscurantista.

4. Atendendo a que são um lóbi poderoso em palavras e de finanças, quase que constitui um poder que perpassa todos os outros poderes: na política, na comunicação social, nas artes, na economia, na justiça… nas (ditas) grandes cidades e metrópoles ou nas pequenas vilas e aldeias… no âmbito da rua e na vizinhança de prédio, no convívio social ou na gestão dos recursos financeiros… nas empresas e nas Igrejas, na roda de amigos ou no contacto com desconhecidos…

5. Esta ideologia de género tornou-se algo que já não se disfarça, antes se faz aparecer como forma de combate primário aos valores do Evangelho, nem que para isso sejam recrutados uns tantos/tantas que servem de ideólogos ou de mentores, atraindo os mais novos à ‘sua’ normalidade. Estamos, de verdade, a travar um combate em que as armas, ao menos publicamente, são desiguais e ai de quem não alinhe na onda, pois corre sério risco de ser difamado ou de lhe criarem condições adversas ao seu trabalho, seja qual for a área ou o campo de atividade. Certas campanhas como a violência doméstica, a denúncia de pedofilia, os casos de assédio (só agora trazidos a público, quando já têm anos de ocorrência) e outras situações mais subterrâneas não cheiram a concertação de meios, de objetivos ou de interesses? Nada disto é inocente nem só coincidente. Não o vemos?

6. Se até já o futebol – que seria um desporto – e num país – Inglaterra: terra-mãe do futebol – como a mais velha democracia do mundo, serve de pomo de discórdia. O que virá mais a acontecer pelas proporções que tudo isto leva… É hora de acordar!



António Sílvio Couto

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Síndrome de húbris – doença do poder

 


‘Síndrome de húbris’ – também conhecida por síndrome da presunção – corresponde a um padrão de comportamento provocado pela exposição a um cargo de poder, que se reflete pelo transtorno de personalidade de homens e de mulheres impulsivos e imprudentes devido aos seus ímpetos autoritários e de quase desequilíbrio emocional.

Talvez esta expressão possa explicar ou ajudar a compreender tantos dos comportamentos que vemos à nossa volta, mesmo sem disso nos darmos totalmente conta… na política, na vida social, na vivência religiosa e até nas atitudes de foro económico-financeiro.

1. Expliquemos os termos e aclaremos os conceitos. O termo ‘húbris’ é um conceito grego que significa “excesso,” numa tradução ao sentido como tudo aquilo que passa da medida, como arrogância exagerada ou insolência em demasia. Com efeito, na mitologia grega eram atitudes consideradas afrontosas contra os deuses e acabavam em punição, enquanto na civilização romana a ‘húbris’ era vista como “petulância” de homens que sucumbiam a um desfecho desonroso.

2. Não será que a linguagem popular portuguesa tem algo de aproximado a esta expressão mais erudita e sanitária: se queres conhecer o vilão coloca-lhe o pau (mando, poder) na mão? De facto, é recorrente ouvir-se: o poder corrompe e ser este for absoluto deixa ainda mais marcas. De quantas formas e tantas modalidades podemos ver pessoas que abusam do poder – pouco ou mais expressivo – e encontramos tantos tiques de que pisa os outros, depreciando-os ou inferiorizando-os. Diz-se que a ‘síndrome de húbris’ tem início na megalomania e termina na paranoia…

3. Este comportamento será melhor avaliado se colocado sob a alçada de alguém da esfera da saúde, tanto psicólogo como psiquiatra. Na busca para compreender este tema encontrei várias caraterísticas da ‘síndrome de húbris’. Elencamos algumas: uma propensão narcísica para ver o mundo em primeiro lugar como uma arena para exercer o poder e procurar a glória. Predisposição para fazer coisas de forma a melhorar a sua imagem. Uma preocupação desproporcionada com a imagem e a apresentação (egocentrismo), sendo a ostentação e o luxo os seus melhores aliados. Tendência para falar de si na terceira pessoa ou uso do plural majestático. Confiança excessiva no seu próprio julgamento e condescendência em relação aos conselhos ou críticas dos outros. Crença exagerada em si mesmo, na fronteira da sensação da omnipotência. Perda de contato com a realidade, muitas vezes associado a isolamento progressivo. Inquietude permanente, indiferença e impulsividade… Talvez uma pessoa com a ‘síndrome de húbris’ acumule mais do que umas destas caraterísticas… Numa leitura um tanto excessiva desta síndrome poderemos considerar domo cúmulo da incompetência hubrística: as coisas começam a correr mal por causa do excesso de confiança e ele nem se preocupa com as dissidências.

4. Embora isto não explique nem justifique social e eticamente as atitudes de tantos do que estão na vida pública – que devia ser de serviço e não só de poder – poderemos entender melhor a ausência de pessoas capazes de liderança, embora se considerem e sejam chefes. Qual a diferença entre chefe e líder? Chefe é uma pessoa que comanda um grupo, um departamento ou uma organização, está investido de poder para a tomada de decisões e é procurado para a solução de problemas. Líder também está à frente de um grupo, departamento ou organização, mas as suas ações influenciam o comportamento das outras pessoas para que os resultados sejam alcançados da melhor maneira possível, sobretudo envolvendo os outros nas decisões e nas soluções.

5. Muito mal estaria uma organização ser o líder sofresse da ‘síndrome de húbris’, embora vejamos muitos investidos em chefia que sofrem claramente desta síndrome, mesmo sem disso se darem conta, mas os outros pagarão muito paga essa fatura…




António Sílvio Couto

Taxa reduzida (6%) nas ‘corridas de toiros’

 

O ‘imposto sobre valor acrescentado’ nos bilhetes das ‘corridas de toiros’ (vulgarmente ditas de touradas) vai baixar da taxa máxima, de 23%, para a reduzida, de 6%, no próximo ano. A proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025) foi aprovada pelos partidos do governo e com o apoio de outro partido apelidado de direita e ainda de outro de esquerda minoritária e com a abstenção do maior partido da oposição – na vigência da sua governança tinha-a tornado no valor máximo – e os votos contra dos restantes partidos.

1. As razões aduzidas para esta mudança situa-se na classificação de que os espectáculos tauromáquicos são considerados como atividade cultural e que, portanto, não podiam ser discriminados com a taxa mais elevada. O custo prático da medida de redução de 23 para 6% foi calculado, por quem supervisiona o orçamento de estado, com a quebra das receitas de cerca de 115 mil euros anuais nos cofres estatais.

2. Diante desta medida algo surpreendente, dado que só atinge uma pequena parcela da população, os ditos ‘aficionados’, podemos e devemos fazer um enquadramento dos principais artigos que são taxados com seis por cento de IVA. No topo da lista estão: A) os produtos alimentares – cereais e preparados à base de cereais; carnes (várias), peixes e moluscos (peixe fresco e conservas), leite, laticínios e ovos, gorduras e óleos gordos (azeite e banha), frutas, legumes e produtos hortículas, águas (à exceção das de nascente e minerais), mel, sal, sumos e néctares de frutos, produtos dietéticos. B) das quarenta e uma situações apresentadas destacamos: livros, jornais e publicações periódicas (científicas, educativas, desportivas); produtos farmacêuticos e similares e respetivas substâncias ativas; aparelhos ortopédicos, cintas médico-cirúrgicas e meias medicinais, cadeiras de rodas e veículos semelhantes; utensílios e outros equipamentos exclusiva ou principalmente destinados a operações de socorro e salvamento; prestações de serviços de assistência domiciliária a crianças, idosos, toxicodependentes, doentes ou deficientes; entradas em espetáculos de canto, dança, música, teatro, cinema, circo, entradas em exposições, entradas em jardins zoológicos, botânicos e aquários públicos… C) Bens utilizados normalmente no âmbito das atividades de produção agrícola e aquícola (adubos, fertilizantes, sementes, forragens)…

3. Que dizer desta longa lista de produtos, de situações e de serviços, em comparação com a ‘importância’ das questões tauromáquicas? Não andará algo subvertido na hierarquia das questões e na referência cultural das mesmas? Quais foram os lóbis que intervieram para que se desse essa mudança mais simbólica do que até económica? Não revelará isto que vivemos num país em ritmos diferentes ou que certas bolhas socioculturais impõem-se mesmo que de forma não sensata nem honesta? A quem interessa que se exponham estas discrepâncias regionalistas e quase em circuito fechado?

4. Se esta matéria das ‘corridas de toiros’ (vulgarmente ditas de touradas), feitas à porta fechada e com cobrança de entrada fossem levadas a referendo seria, em princípio, daqueles que não votaria contra a sua realização, embora isso não me diga absolutamente nada como expressão (dita) cultural. No entanto, considero que se deva salvaguardar a possibilidade de que tais ‘espetáculos’ tenham condições mais humanas e dignas nas lides dos animais. Com efeito, não será pela repressão, mas pela educação séria, serena e progressiva, que as mentalidades se irão modificando…lentamente.

5. Depois de tanta discussão à volta do OE2025 fica a sensação de que ainda há muito dinheiro de sobra – será excedente ou terá outro segredo de designação – para distribuir em benesses de interesses mais ou menos claros. Eis que, de repente, vemos uma espécie de bodo-aos-pobres em que uns tantos reivindicam, exigem e fazem aprovar matérias que lhe poderão, num futuro próximo, valer como argumentos em favor dos seus apoiantes ou simpatizantes. Será isto governar? Até onde irá este clima de recebe mais, quem mais grita?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Água – do poder à exploração

 

Agora como na afirmação das civilizações, a água tornou-se um fator de poder e de relevante importância para a sobrevivência das pessoas e das sociedades. Se repararmos as cidades mais significativas estão situadas na bacia de algum rio ou na proximidade ao mar. Por isso, a água é nitidamente um fator de desenvolvimento e de consolidação das civilizações, antes como agora.

1. Nos tempos mais recentes assistimos a alterações graves e quase repentinas onde a água está como sujeito: umas vezes por excesso (inundações e tempestades) e outras por ausência (secas e condicionamentos). De bem quase normal e sem restrições tornou-se a água num bem precioso e do qual devemos cuidar com toda a atenção. Cresce a consciencialização de que já não é inesgotável, sobretudo se atendermos à água potável.

2. Hoje, na nossa sociedade (dita) ocidental, temos acesso à água como produto fornecido por entidades municipais ou regionais e fomos descobrindo sobre a água múltiplas contingências, desde a captação até ao consumo e mesmo à sensibilização para o bom uso de um produto que, sendo de todos, deve ser preservado (no uso e na vivência coletiva) com ainda com maior cuidado.

3. Além do abastecimento de água, que inclui o consumo e uma tarifa de disponibilidade, os consumidores também pagam os serviços de saneamento e de recolha e tratamento de lixo na sua fatura da água. Foi com base nestes três valores, definidos pelo Estado, por cada município e/ou conjunto de municípios (dependendo da zona do país), tendo deixado de fora os impostos que acrescem às faturas. Se consultarmos com atenção a faturação da água veremos que o consumo desta é a parte mais ‘barata’ do leque de itens…

4. Surgiram recentemente notícias sobre as discrepâncias de custos da mesma quantidade de água nos vários municípios, segundo uma entidade reputada do âmbito das questões ambientais e, em concreto, deste tema da água. Eis alguns dados: para consumos anuais de 120 metros cúbicos de água – em Amarante o custo é de 494,47 euros, em Oliveira de Azeméis de 491,94 euros, em Ovar de 477,81 euros, em Albergaria-a-Velha de 477,15 euros, em Baião de 476,24 euros...os cinco preços mais elevados do país. Foz Côa – 94,09 euros, Castro Daire – 108 euros, Terras de Bouro – 108,38 euros, Vila Flor – 114 euros e Vila Nova de Paiva – 124,20 euros...estão no extremo oposto, cobrando os valores mais baixos.

5. Este tema da água vai-se tornando um assunto de primaz importância, não só pela necessidade que temos dela, como dos riscos que corremos em fazermos perigar o bom uso e a correta relação dos cidadãos como este bem precioso e essencial para a vida. Para além de ser um assunto presente em todas as expressões religiosas, a água é, de facto, um sinal da vida humana, psicológica e mesmo espiritual. Por isso, temos de incluir na nossa educação – geral e específica – a reflexão sobre o significado da água e das implicações pessoais, familiares e sociais da água, enquanto elemento que guia a vida e como força geradora de mais e melhor condição de vida.

6. É pena que forças exotéricas se queiram apropriar da linguagem interpeladora do tema da água e mesmo pela manipulação de certas crenças em relação à mesma. Por vezes são os cristãos quem menos reflete sobre a incidência da água na sua expressão religiosa. Quantas vezes, a ‘água batismal’ deveria ser mais referida na prossecução dos ritos cristãos e católicos em especial. Como seria útil e essencial valorizar o nosso uso diário da água, desde a forma de hidratação até ao uso na higiene/limpeza, passando pela ação recorrente nas atividades económicas, ambientais e religiosas.

7. A água é vida e deve ser tratada como dom de Deus, isto é, nas palavras de S. Francisco de Assis: louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é tão útil e humilde, precisa e casta!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Dupla beneficiação da RTP

 

Mais uma vez somos induzidos em erro pelas forças mais estatizantes do nosso espetro político: a empresa de comunicação Rádio e Televisão de Portugal (RTP) usufrui de uma dupla beneficiação: recebe dinheiro dos contribuintes e ainda (em quase concorrência desleal) pode ter publicidade paga pelos anunciantes e, por consequência, pelos clientes-telespetadores... Segundo dados consultáveis a RTP tem quase mil e seiscentos empregados...em diferentes plataformas e canais (oito), não esquecendo os centros de produção (dois), as delegações nacionais (doze), os correspondentes internacionais (treze)... num mundo nem sempre claro ou totalmente aberto.

1. Vejamos situações e contributos que todos (de forma indistinta e anónima) damos para esta empresa, que gera e gere tantos interesses, de forma direta e indireta. Se atendermos à fatura da eletricidade veremos que a ‘contribuição para o audiovisual’ é significativa, preenchendo no contexto geral das receitas da RTP mais de 190 milhões de euros (números do ano passado). Mesmo que não tenha qualquer aparelho de receção de televisão todos contribuem de forma universal e quase coerciva...

2. A publicidade na (dita) televisão pública significa mais de 20 milhões de euros anuais, o que representa dez por cento das suas receitas. Nas regras gerais da publicidade televisiva, a lei determina que só haja publicidade até doze minutos por hora, isto é, vinte por cento em programas de acesso livre. No caso do estatuto da RTP o contrato de concessão só permite seis minutos de publicidade por hora. Está previsto que, durante os noticiários, programas de informação política ou filmes, a publicidade só pode interromper a programação a cada trinta minutos de duração.

3. Não deixou de ser uma questão ideológica a medida que o governo em funções viu derrotada na votação do Orçamento para 2025 de pretender retirar a publicidade até 2027 na RTP. Qual foi a razão de fundo desta união em defesa da publicidade na televisão (ainda) estatal? Não andará ainda a flutuar a ideia de que convém ter uma ‘voz do dono’ quando se está no poder? Quem tem medo da concorrência: a acomodação ou a competência? A desconfiança para com a comunicação social privada revela que algo está escondido no serviço da televisão estatal? A ver pela unicidade em defesa da RTP e afins não parecerá que ainda paira na mente de muitas pessoas o saudosismo da voz única e sem discordância?

4. Fique claro: defendo que a comunicação social (seja qual for a forma de se apresentar) deve ser livre de tutelas e de influências, podendo e devendo cada um escolher quem quer ver e ouvir, sem teias nem peias. Ora isto que vimos de tutelar a comunicação social sob proteção do Estado não passa de uma visão protecionista e condicionadora da escolha, tanto de quem faz como de quem consome. De uma forma um tanto infantil se pretende que todos (ou a maioria) seja doutrinado pela forma de dizer ou de perspetivar quem se deixa guiar pela televisão estatal. Talvez desta forma não se evolua na qualidade nem se ganhe na diversidade/pluralidade de leituras das coisas e das pessoas.

5. De facto, mais de três décadas decorridas parece existir um nítido servilismo ao que vem do estatal. Quem acompanhou o emergir das rádios locais (início dos anos 80) e, posteriormente, o surgir das televisões privadas como que sente um certo arrepio quanto a esta uniformidade dependurada no vetor da comunicação social do Estado. Acumular as duas fontes de rendimento – contributo do audiovisual e da publicidade – além de desonesta é dar mais meios do que os outros têm: para além de injustiça é falta de imparcialidade.

6. Até quando teremos de suportar a subsidiodependência de tantos a sobreviverem nas ondas do poder e da ideologia reinante, mesmo que já tenham terminado a validade?



António Sílvio Couto

sábado, 23 de novembro de 2024

Campanhas enganosas… à custa da ignorância

 


Nesta época prévia ao Natal vemos surgirem diversas campanhas (ditas/apelidadas/pretensamente) de solidariedade, seja com gestos ‘fraternos-e-solidários’, seja com artimanhas de empresas de consumo, seja mesmo através do recurso à recolha de bens e de serviços, usando mesmo o contexto eclesial. Há casos que são apresentados como de benemerência à custa de falsa participação dos compradores, noutros casos como que se usa a menos boa condição dos ‘pobres’ para fazer deles matéria de simulação.

1. Quem não foi já às compras – numa certa cadeia comercial, que não identifico por respeito aos usados – e, na hora de pagar, lhe é perguntado se quer participar na campanha de ajuda a uma determinada instituição, doando um montante relativamente pequeno? Se estou imbuído no espírito de querer participar lá deixo adicionar à conta mais uma pequena ajuda. Só que esta aparece como sendo da cadeia comercial-consumista e não do cliente participante, mas, quando forem apresentadas as contas, surge que foi dele e não minha, embora o tenha feito de forma enganosa, servindo-se da minha boa vontade manipulada. Os milhares angariados (e são muitos em todo o país) – e posteriormente distribuídos com pompa e circunstância – não são de facto dos compradores mas da entidade benemerente. Pior, a grande cadeia comercial entra no role dos mecenas, sem nada ter feito, antes só usando os clientes, que nem compraram nem doaram nenhum produto, só deram aceção a ser acrescentada uma pequena migalha ao bolo do capital recetador.

2. Para os mais céticos estas campanhas natalícias soam a aproveitamento dos mais desfavorecidos – prefiro esta palavra à expressão ‘mais necessitados’ – como se eles só precisassem de comer e de bens essenciais por ocasião do Natal. Outros replicam: mas se já nem no Natal os lembrássemos seria ainda pior. De facto, ainda vamos vivendo esta sensibilidade aos outros, partindo da realidade humana-divino emergente do mistério da Encarnação de Jesus e do seu nascimento, que celebrámos no Natal. Com efeito, a nossa comunhão de uns com os outros ganha nova forma e força desde a presença e participação de Jesus com os humanos. De resto, a mera filantropia horizontalista, que move tantos dos nossos contemporâneos, poderia ser melhor informada se soubéssemos e fossemos capazes de a transcender no mistério do Natal de Jesus.

3. É quase repugnante – digo-o do ponto de vista cristão – que se fale do Natal revestindo-o de certas roupagens, que têm tanto de populista, quanto de abjeto e de melindroso: reduzir o Natal a mesa farta e a consumo materialista, soa a algo que deixará amargo de boca na hora da avaliação. Alimentar o espírito de Natal com o mero flamejar de luzes, que já nem são velas nem aquecem, antes só fascinam quem as vê. Celebrar o Natal esquecendo O festejado, torna-se algo de ilusão e sem nexo de causalidade. De que interessa fazer ‘jantares de natal’, se, ao longo do ano, as pessoas se ignoram ou mesmo detestam? Que interessa reunir para comer, se não se consegue confraternizar no resto ano? Não andaremos, mais uma vez, a ficcionar aquilo que deveria nortear a nossa vida social, familiar e pessoal?

4. Recristianizar o Natal é urgente, se ainda conseguirmos perceber o que está em causa, pois, seria de duvidosa consciência querer usufruir daquilo que nos favorece e menosprezar as causas da mesma celebração. Deveríamos refletir sobre as razões que levaram tantas pessoas a quedar-se pelo ‘natal consumista’, mesmo que já tenham tido a vivência do natal cristão. Como poderemos, enquanto cristãos/católicos, traduzir em gestos, palavras e sinais o Natal de Jesus nos nossos ambientes? Já paramos um pouco para tentar encontrar a quem vamos anunciar o Natal de Jesus com simplicidade e verdade?

5. Não esqueçamos a mensagem central do Natal: hoje vos anúncio que nasceu para vós o Salvador, Jesus Cristo Senhor! Usemos as ferramentas já provadas – coroa do Advento, presépio ou até presentes (que não as prendas)– para que Jesus possa estar mais vivo e não meramente decorativo. Será que Jesus tem lugar no meu coração, na minha casa e na minha família?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Carta aberta aos antigos frequentadores do Seminário Menor de Braga

 

Agora que se completam cem anos dessa casa que nos serviu de ‘escola’ de vida – educativa e intelectual, religiosa e espiritual, humana e cultural – durante significativas etapas da nossa vida, desejo partilhar convosco o que foi para mim esse tempo – de 1969 a 1974 – e como que deixar sugestões para os que viveram idêntica experiência.

* Dizem que passaram pelo Seminário Menor – apelidado ainda de Nossa Senhora da Conceição ou da Tamanca – cerca de dez mil alunos. Desses tantos talvez só tenham sido ordenados padres dez por cento. Mas quantos bons homens e homens bons – que são mais do que ‘sacristães’ qualificados – estiveram e estão na vida da nossa sociedade. É a esses – vós, para usar a linguagem nortenha – que me quero dirigir com verdade e sinceridade, com humildade e espírito de compreensão… mesmo que boa parte nem eu conheça nem me conheçam, mas todos recebemos uma marca que reputo de boa, mesmo que pedindo desculpa ou perdão àqueles que se possam sentir mais magoados, melindrados ou escandalizam por isso…

* Desse tempo recordo quem nos educou – nalguns casos segundo métodos hoje considerados pouco pedagógicos – dando o que sabia, mesmo que fosse resultado dos traumas que lhes foram incutidos anos antes por outros destinados a serem prefeitos, embora nem sempre perfeitos…

* Fique, desde já claro, causa-me náuseas e repulsa essas insinuações sobre ‘abusos’, tão propalados nos tempos mais recentes. Será que não quer dizer nada que não tenhamos conhecimento público de acusações saídas da ‘nossa’ casa, que nos formou e formatou? Na minha memória nada está registado sobre o assunto… E como era exigente a formação religiosa e espiritual dos jesuítas – com o célebre Padre Fernando Leite à testa – que nos foram dados como ‘diretores espirituais’/confessores! Certamente homens santos e acrisolados…diante de Deus e na dureza da vida!

* Fomos, todos o sabemos e experimentamos, educados na contenção, na exigência, com parcos recursos (materiais e económicos) – afinal saímos quase todos de meios também eles algo indigentes – norteando o fazer pela qualidade do ser, despojados de todo o parecer, que as meditações diárias nos acrisolavam para maior virtude, sem disfarce e pela verdade.

* O aproveitamento escolar era fomentado como forma de afirmação, dentro e fora de portas. Muitos de vós vingastes na vida porque aprendestes a procurar atingir fins respeitando os meios. Quantos de vós, que sois, hoje, figuras reputadas na vida social e política, no campo laboral e intelectual, nos meios escolares e da afirmação universitária e que deveis ao Seminário Menor as vossas raízes.

* Tenho pena que, nas paróquias e na vida eclesial, não vos sintamos – digo por mim – tão presentes e ativos como seria desejável. Não vos censuro, mas tenho pena de perder a sintonia de onda – aqui como noutras paragens – que podíamos cultivar e viver…ao menos como forma de diálogo e, porque não, como confronto de ideias para a purificação dos ideais…

* Há quem considere que a passagem pelo Seminário quase imprime caráter, isto é, deixa marcas nem sempre fáceis de disfarçar. O tempo pode ter sido pouco, mas o sinal ficou…Por vezes, há quem destoe desta boa impressão e como que contradiga o tempo de ter andado no Seminário, mas a semente foi lançada…mais tarde ou mais cedo frutificará.

* Por ocasião deste centenário do nosso Seminário Menor, considero um por-maior podermos revisitar os lugares, sentir a memória e guardar no compromisso tudo quanto nos foi dado viver, de entre os melhores aspetos, a fraternidade – camaradagem seria o termo mais correto, pois vivemos tantos na mesma camarata – que se prolonga pela vida fora. Para o bem ou para o mal, a expressão – ‘no tempo do seminário já era assim’ – continua a fazer caminho, sejamos ou não padres.



= Deixo este meu testemunho, na esperança – o órgão de comunicação do Seminário Menor é ‘voz da esperança’ – de sermos dignos continuadores dos milhares de antecessores e de outros tantos sucessores. Neste ano jubilar da Esperança, assim continuemos a semeá-la com simplicidade e verdade.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Quem tem medo do ’25 de novembro’?

 

Decorridos quase cinquenta anos sobre a efeméride ainda há quem não consiga perceber o significado da data de ’25 de novembro de 1975’, como uma segunda etapa do que aconteceu em abril de 74. Embora haja quem compreenda o significado do ’25 de novembro’, outros continuam aferrados aos seus preconceitos, mesmo que a expressão eleitoral se venha a tornar quase residual... o tempo passa e as convicções deixam a nu a falta de razão.

1. Um dos arietes do ’25 de novembro’ foi Ramalho Eanes, comandante operacional do acontecimento e que foi presidente da República entre 1976-1986. Será útil recordar o que ele disse e escreveu sobre esta data em apreço. «Não percebo que estigmatizem o 25 de Novembro, porque o 25 de Novembro é a continuação do 25 de Abril; é a reafirmação de que as promessas feitas pelos militares à população portuguesa se mantêm, e se mantêm com toda a força, seja como for, quaisquer que sejam os obstáculos”. É altura de reconhecer que “houve um período muito complicado entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, que houve movimentos que tentaram – compreensivelmente, em minha opinião – impor as suas ideologias, o que, obviamente, o MFA não permitiu, porque isso seria, de alguma maneira, contrariar, não responder, não respeitar a promessa de Abril. E portanto, tivemos de fazer o 25 de Novembro, mas, a partir daí, o país criou unidade, unidade plural, obviamente... Entendo que o esquecimento do 25 de Novembro não ajuda a democracia, porque a história não se apaga. É com a história, e regressando à história, de forma não endémica nem nostálgica, que aprendemos a evitar erros futuros»

2. Quem assim se exprime sabe daquilo que fala e deve-nos fazer tomar consciência de que pode haver erros, exageros e tropelias, mas também podem ser corrigidos, atenuados ou servirem-nos de lições para o futuro. Foi isso que o ’25 de novembro’ quis operar. Com efeito, a maioria dos deputados assentados no atual parlamento eram, pelo menos imberbes, à data da revolução de abril. Uns tantos – e no feminino também – são filhos dos que desenvolveram o PREC, entre assaltos e atentados, com brigadas revolucionárias e acusações de capitalismo... afundando empresas e atirando para o desemprego os seus apaniguados. Alguns contestaram a adesão à União Europeia e a pertença ao euro, mas usufruem boas maquias quando são deputados no Parlamento Europeu.

3. Recordemos, por isso, sucintamente alguns dos acontecimentos ocorridos nos dezanove meses entre o ’25 de abril de 74’ e o ’25 de novembro de 75’. Datas como o ‘11 de março’ ou o ‘28 de setembro’, sem esquecer os comícios inflamados em certas zonas da ‘margem sul’ do Tejo, a destruição da Rádio Renascença... com a resposta das manifestações em Braga, em frente à Sé catedral, a cadeia de limpeza de certas sedes partidárias, a avalanche de cidadãos (rotulados) de ‘retornados’, as emboscadas e rusgas arbitrárias em várias zonas do país, as perseguições e confrontos por ocasião da ordenação do primeiro bispo de Setúbal, em outubro de 1975... são alguns dos acontecimentos que perfizeram o hiato entre o ‘25 de abril de 74’ e o ‘25 de novembro de 75’. Varrer para debaixo do tapete da História esses factos – nalguns casos com forte repercussão em famílias e sociedades – seria esconder algo que traumatizou o país...irremediavelmente.

4. O ’25 de novembro’ não foi nem pode ser a esponja sobre algumas das malfeitorias de pessoas que agora têm medo que se descubra o passado pessoal e familiar. Não podemos continuar a tratar como heróis figuras que contribuiram – e desgraçadamente ainda hoje – para o retrocesso do país só porque querem ficar nos louros revolucionários da adolescência. Basta de afrontas. Assumam o que fizeram e deixem que o país real caminhe para o desenvolvimento. Quando serão responsabilizados pelas fábricas que fizeram ruir e levaram para o desemprego tantos que os seguiram acriticamente? A história não se reescreve como faziam noutras paragens que eles queriam impor em Portugal e que o ’25 de novembro’ corrigiu... A verdade, sempre!



António Sílvio Couto

sábado, 16 de novembro de 2024

Movimento 4B – que significa entre nós?

 


Em 2019, teve origem na Coreia do Sul, um movimento atualmente conhecido como 4B, no qual as mulheres negam principalmente quatro ações, todas começadas por B: ‘bihon’ - a recusa do casamento heterossexual; ‘bichulsan’ - recusa de engravidar; ‘biyeonae’ - recusa de namorar; ‘bisekseu’ - recusa de relações sexuais heterossexuais. Este dito movimento feminista tem vindo a crescer em visibilidade, sobretudo, nos Estados Unidos da América e por ocasião das recentes eleições presidenciais.

1. Que implicações – a curto ou a médio prazo – pode ter este movimento no nosso país? Será mais uma moda, recauchutada pelos americanos, ou uma vaga mais profunda das sociedades? Como se pode entender mais a fundo esta questão? Que razões – lá (Coreia do Sul e EUA) e por cá – levam a encetar estas reações? Não será que este movimento 4B é mais do que simbólico, mas paradigmático das contestações feministas à volta do planeta? Até onde irá esta onda de ideologia de género tácita ou explícita?

2. Atendendo aos mentores, promotores, difusores e patrocinadores deste movimento 4B, temos de estar atentos às raízes da questão, bem como às consequências da sua difusão. Com efeito, mais do que rejeitar – casamento heterossexual, ter filhos, namorar ou ter relações heterossexuais – tudo isto implica uma outra opção homossexual presumida ou assumida, como se fosse um grito de libertação contra tudo quanto possa alembrar outro sexo, o masculino. Embora se possa revestir de luta contra as manifestações de machismo – primeiro na Coreia do Sul e depois nos EUA – isso tenho ganho maior proporção em países e culturas onde a mulher continua desfavorecida e mesmo explorada… tanto em casa como na vida laboral, social e pessoal.

3. Efetivamente estamos no século XXI, com problemas que são e se prolongam do século da industrialização: a discrepância de salários entre homens e mulheres continua a ser algo de significativo, até porque muitas delas têm habilitações e instrução superior a eles. Agora que estamos numa crescente alfabetização torna-se ofensivo, degradante e mesmo provocatório que os homens, pela simples razão de o serem, continuem a usufruir de vencimentos superior às mulheres, mesmo que exerçam trabalho idêntico e a par uns dos outros. Esta vertente agravante nalgumas sociedades não pode uma razão tão extremista que se capta no subterrâneo do movimento 4B.

4. Consideremos, no entanto, algumas das causas do movimento 4B: a rejeição da vida transmitida pela via sexual entre homem e mulher, a abjuração da complementaridade sexual e a repulsa ao não-feminino. Ao nível cristão nada disto tem razão de ser nem sustenta a vida de compromisso social e cultural da família. Aliás, esta parece estar fora dos critérios do dito movimento 4B. A família poderia ser algo à la carte, nesse sentido tão difundido por setores com maior ou menor propaganda na comunicação social.

5. De uma coisa parece que podemos ter presente: este movimento tem poder não só de intervenção, mas também económico e com expressão transnacional. Esta tendência de internacionalizar questões locais e regionais tem vindo a crescer nos nossos dias, criando a sensação de que alguém comanda isto tudo e faz com que, algo que parecia lateral e secundário, emerja como normal e com larga difusão ao longe e ao largo. Aquilo que noutros tempos soaria a disfunção de uma pessoa contestatária e fora dos esquemas gerais, agora assume foros de normalidade e como manifestação generalizada de uma certa cultura.

6. Algo ainda preocupante é perceber que muitos destes motivos de luta, de confronto ou de dissonância se situam no contrário dos valores do Evangelho ou como repulsa deles mesmos. Depois da família e da vida podemos encontrar outras vertentes bem mais pessoais e com incidência na personalidade de cada um. Aquilo que foi considerado tabu em certas culturas e expressões religiosas, agora saiu do armário e pavoneia-se na via pública. Até quando conviveremos com esta multiplicidade de éticas? Estaremos preparados para responder, cristãmente, à altura dos factos e das situações?


António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Sínodo dos Bispos apresenta orientações

 


Terminada a segunda sessão da XVI Assembleia Geral ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu, em Roma, de 2 a 27 de outubro de 2024, foi apresentado o documento final. Neste lê-se no número onze: «O Documento Final exprime a consciência de que o chamamento à missão é, ao mesmo tempo, chamamento à conversão de cada Igreja particular e de toda a Igreja, na perspetiva indicada na Exortação Apostólica Evangelii gaudium (cf. n.º 30). O texto é composto por cinco partes.

A primeira, intitulada O coração da sinodalidade, delineia os fundamentos teológicos e espirituais que iluminam e alimentam o que se segue. Reafirma a compreensão partilhada da sinodalidade que emergiu na Primeira Sessão e desenvolve as suas perspetivas espirituais e proféticas. A conversão dos sentimentos, imagens e pensamentos que habitam os nossos corações prossegue juntamente com a conversão da ação pastoral e missionária.

A segunda parte, intitulada Juntos, na barca, é dedicada à conversão das relações que constroem a comunidade cristã e configuram a missão no entrelaçamento de vocações, carismas e ministérios.

A terceira, “Lançai a rede”, identifica três práticas que estão intimamente ligadas: discernimento eclesial, processos de decisão e cultura da transparência, da responsabilidade e da avaliação. Também em relação a estas, somos convidados a iniciar caminhos de “transformação missionária”, para os quais é urgente uma renovação dos organismos de participação.

A quarta parte, sob o título Uma pesca abundante, descreve como é possível cultivar em novas formas a permuta de dons e o entrelaçamento dos laços que nos unem na Igreja, numa altura em que a experiência de estar enraizado num lugar está a mudar profundamente.

Segue-se uma quinta parte, “Também eu vos envio”, que nos permite olhar para o primeiro passo a dar: cuidar da formação de todos no Povo de Deus em sinodalidade missionária».

No número subsequente explica-se o método usado para o percurso feito pelo mesmo documento: «a elaboração do Documento Final é guiada pelos relatos evangélicos da Ressurreição. A corrida ao túmulo na madrugada de Páscoa, a aparição do Ressuscitado no Cenáculo e na margem do lago inspiraram o nosso discernimento e alimentaram o nosso diálogo… Com este documento, a Assembleia reconhece e testemunha que a sinodalidade, uma dimensão constitutiva da Igreja, já faz parte da experiência de muitas das nossas comunidades. Ao mesmo tempo, sugere caminhos a seguir, práticas a implementar, horizontes a explorar. O Santo Padre, que convocou a Igreja em Sínodo, dirá às Igrejas, confiadas ao cuidado pastoral dos Bispos, como prosseguir o nosso caminho apoiado na esperança que “não engana” (Rm 5,5)».

= Traçadas estas linhas gerais precisamos de encetar o difícil e quase-complexo processo de receção do mesmo, atendendo à participação de todos os fiéis – nessa linguagem do Código de Direito Canónico (cânone 204 § 1) – que inclui nesta terminologia todos os batizados, sem os classificar por vocações ou por ministérios, na sua diversidade e/ou complementaridade.

= Embora a terminologia ‘sinodalidade’ continue a deixar alguns setores da Igreja na reserva, ela já fez caminho suficiente para que não nos interroguemos todos – clérigos e leigos, bem como religiosos – sobre a nossa tarefa que nos compete por direito próprio e não por exclusão de nada e muito menos de ninguém…

= O que é a espiritualidade sinodal? «A sinodalidade é, antes de mais, uma disposição espiritual que permeia a vida quotidiana dos batizados e todos os aspetos da missão da Igreja. Uma espiritualidade sinodal nasce da ação do Espírito Santo e requer a escuta da Palavra de Deus, a contemplação, o silêncio e a conversão do coração… Uma espiritualidade sinodal exige também ascese, humildade, paciência e disponibilidade para perdoar e ser perdoado. Acolhe com gratidão e humildade a variedade de dons e tarefas distribuídos pelo Espírito Santo para o serviço do único Senhor (cf. 1 Cor 12, 4-5)…Ninguém pode percorrer sozinho um caminho de espiritualidade autêntica. Precisamos de acompanhamento e apoio, incluindo a formação e a direção espiritual, como indivíduos e como comunidade» (‘Documento final’, n.º 43).



António Sílvio Couto