No primeiro dia da ‘novena do Natal’ (17 de dezembro) a liturgia da palavra na missa propõe-nos a leitura do evangelho segundo São Mateus da genealogia de Jesus (Mt 1,1-17), numa interpretação de toda a história do povo de Israel. Por seu turno, nós podemos encontrar nesta genealogia algumas das etapas da nossa própria caminhada pessoal, familiar e social…
1. Citamos uma análise do Papa Bento XVI sobre esta passagem da genealogia de Jesus: «A genealogia, em Mateus, é uma genealogia dos varões; nela, porém, antes de Maria – com que termina a genealogia – mencionam-se quatro mulheres: Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias... As quatro mulheres teriam sido pecadoras (...) A genealogia termina com uma mulher - Maria - que, na realidade, constitui um novo início e relativiza a genealogia inteira (...) A genealogia mantém a sua importância: José é juridicamente o pai de Jesus. Por meio dele, Jesus pertence segundo a Lei, ‘legalmente’, à tribo de David» – Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré - a infância de Jesus, Cascais, Principia, 2012, pp. 13-14. Quando seríamos tentados – na nossa visão moralista – a considerar que os evangelistas fariam uma leitura edificante dos antecedentes de Jesus, vemos que de entre eles há quem não seja tão ‘santo’ assim ou, pelo contrário, manifestam as marcas do pecado – Tamar – nora de Jacob que enganou o filho deste; Raab era prostituta; Rute – moabita (logo fora do povo de Israel) e David que cometeu adultério com a tal mulher de Urias. Temos que certas manchas morais na genealogia de Jesus fariam questionar aqueles/aquelas de quem é descendente segundo a condição humana.
2. Aqui pode e deve entrar a nossa – a de cada um e segundo a sua sensibilidade religiosa e espiritual – leitura e interpretação da história da minha família… Creio não ser exagerado considerar que não há nenhuma família que seja (ou foi) sempre tão certinha que nunca houve qualquer desvio moral, sentimental ou de confusão: quem disser que nada aconteceu na sua família que possa manchar a ‘sua’ história, correrá o risco de ser considerado mentiroso ou de faltar no mínimo à verdade. Todos temos pequenas ou grandes lacunas, que, afinal, fazem com que sejamos aquilo que somos hoje. Certamente que certos ‘erros’ contribuíram para que sejamos aquilo que somos, hoje. Depreciar o nosso passado será como que renegar a nossa identidade, mesmo que isso seja de complicada gestão ou mesmo digestão.
3. Diante de tudo isto se impõe a assunção de todo um processo psicológico e mesmo espiritual de enquadramento assumido para que possa haver harmonia na nossa identidade. Mesmo que tal nos possa ser complicado, será aí que poderemos perceber quem somos, de onde vimos e para onde vamos. Com efeito, a nossa história é muito mais do que idílica, pois, de um modo simples e humilde, compreenderemos também os outros e tudo quanto lhes possa ter acontecido. Quantas vezes são os possíveis percalços dos nossos antepassados que ajudam a explicar quem somos e o modo como nos comportamos. Não são só as heranças económicas que os nossos antepassados nos transmitem, mas também tanta outra coisa que nos é dada pela confluência sanguínea, psicológica e mesmo moral/espiritual.
4. Quantos dos genes mais recônditos nos podem ser comunicados e nem sempre os conhecemos, reconhecemos e até aceitamos. A designada ‘herança genética’ é bem mais funda do que as semelhanças físicas, mas compreende um todo de código genético que nem sempre explicamos, mesmo nas situações mais complexas. Embora possa haver mutações resultantes das condições ambientais mais ou menos adversas versus concordantes, a nossa hereditariedade ultrapassa as barreiras que os nossos conceitos pretensamente culturais potenciam ou valorizam.
5. Se na genealogia de Jesus não foi limpo o que era considerado menos agradável quem somos nós para rejeitar a nossa história familiar, com as implicações sociais inerentes? Neste ano jubilar da condição cristã/católica precisamos de purificar a memória para sermos quem somos sem medos nem altivez…
António Sílvio Couto
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