Por estes dias ouvimos esta expressão – ‘éramos felizes e não sabíamos’ – do mais alto dignitário da Nação, numa abordagem, como tantas outras, sobre uma situação que teve de explicitar, na medida em que se referiria a um primeiro ministro já fora de funções e de quem aceitou a demissão há cerca de um ano atrás... Tais palavras soaram mais a exame de consciência do que a avaliação da governança e seus tentáculos.
1. Tentemos discernir o significado desta expressão a partir do contexto sócio-político atual, atendendo aos personagens que então eram os atores. Com efeito, o chefe de Estado referia-se ao tempo em que coabitou com António Costa, agora presidente do Conselho Europeu. Nas palavras do Presidente-comentador: ‘dizia muitas vezes a um governante com o qual partilhei quase oito anos de experiência inesquecível: um dia [se] reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos... Era tudo relativo, era uma felicidade relativa, mas, comparando com o que vinha por aí, era uma felicidade’.
2. Não dá a impressão que o termo ‘felicidade’ está aqui usado num sentido tão lato, que quase se confunde com uma certa tolerância e bonomia simplista? Até onde irá o conceito de ‘felicidade’, se aquilo que vimos e sentimos, à época, pareceu mais uma espécie de passa-culpas, onde ninguém assumiu nada? Não será que nem tudo dito nem feito para que a crise posterior àqueles acontecimentos tenha sido mais forjada do que real? Sem conjeturar sobre as afirmações mais recentes do PR, nem tudo vai bem no reino-do-faz-de-conta...
3. Esta questão de relacionamento político-afetivo daqueles que nos governam tem de ser cada vez mais um ponto de referência para todos. Com efeito, certas quezílias e intrigas nos espaços de discussão parecem não passar de um certo teatro – com atores de classe pouco recomendável, na forma e pelo conteúdo – e quase dando a entender que as palavras usadas fazem parte de um guião escrito por outros que não aqueles que as proferem. De facto, só quem não meça as palavras acreditará que aquilo que alguns ‘políticos’ dizem não soa a coisa sem sentido e sem nexo, pois a luta ideológica não pode fazer das pessoas um quê de irracional sem coração nem sentimentos básicos.
4. Por ocasião do centenário de nascimento de um dos considerados ‘pais’ da democracia (Mário Soares), ficou bem visível como nos falta qualidade e têmpera na luta por ideais. Hoje – fruto das múltiplas circunstâncias – podemos constatar a ínfima qualidade dos que fazem a vida pública – política, económica, cultural, religiosa e mesmo ética. Recordando certas noções básicas teremos mais chefes do que líderes, na medida em que aquele manda e este cativa para com outros fazer. Onde estão os que se norteiam por ideais e não por meras ideias sem horizonte nem desafio de subir mais alto, mais longe e mais fundo?
5. Vai mal a conexão de conceitos e a prossecução dos objetivos, na medida em que tantos do que surgem na vida pública o que pretendem é salvaguardar a sua vidinha mais ou menos barata nos custos mas cara nas consequências. Faltam-nos homens e mulheres com perfil de serviço desinteressado aos outros, com as mãos voltadas para dar e com preocupações centradas fora de si mesmos, sem tirarem proveito nem benefício daqueles que servem. Pior ainda quando vemos protegerem os seus, sejam os da família, sejam os do partido ou até aqueles a quem já devem favores. Este jogo de compadrios manifesta-se nas pequenas como nas grandes instâncias, da freguesia ao concelho, do país aos lóbis... sem esquecermos que hoje muitos destes são transversais, transnacionais e até transgénicos.
6. Coitada da felicidade que pauta as suas regras pelo contentamento circunstancial e enquanto não há problemas, pois estes são, muitas vezes, o melhor critério para aferirmos de quem vive o desinteresse das suas mazelas e cuida dos mais desprotegidos e necessitados... Qual o meu ideal de felicidade, hoje?
António Sílvio Couto
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