Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 16 de maio de 2023

Vivência comunitária personalizada

 

Ao aproximarmo-nos da celebração do Pentecostes talvez possa útil que nos acerquemos dos relatos do mesmo nos Atos dos Apóstolos e possamos ver as consequências do Espírito Santo na vida da Igreja nascente. Algo de novo aconteceu. Como o podemos atualizar? Que vertentes precisamos de aprofundar? Estaremos vivos na força do Espírito Santo?

Ora, se há dimensão que revela riqueza humana e espiritual é a força da comunidade dos irmãos, desde os primórdios da Igreja. No entanto, essa dimensão poderosa e essencial do cristianismo não se dissolve num ‘coletivo’ ou num anonimato, pelo contrário, cada pessoa é e faz a Igreja, tornando esta, com o seu contributo, um espaço de maior presença de Deus.

Após a acrisolada época da pandemia somos sentindo uma espécie de abandono dos participantes na vida comunitária regular da Igreja. Depois da ‘religião das pantufas’, servida no conforto do sofa, torna-se difícil voltar a sair de certos clichés de acomodação: estar com os outros precisa de vencer barreiras de egoísmo e de defesa higienista. Atendendo a essa frase atribuída a Bento XVI poderemos considerar que muitos ‘não sairam [da Igreja comunidade e templo] porque nunca chegaram a entrar’.

Lemos nos Atos dos Apóstolos: «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações» (2, 42). Estes aspetos são considerados os pilares da comunidade primitiva: o ensino (didaskalia), a comunhão (koinonia), a fracção pão (eucaristia) e as orações… todos estes aspetos sob a expressão ‘eram assíduos’, isto é, numa participação comprometida de todos.

Centramos a nossa atenção nestes quatro pilares da comunidade, tendo ainda em conta outros sumários do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. 4, 32-35; 5, 12-15)… tentando descobrir, hoje, implicações destes mesmos sinais:

* Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos

Esta fundamental vertente de formação na doutrina da Igreja percorre os mais diversos estados e estádios da caminhada cristã: todos e nas mais diferentes idades precisamos de aprender, dado que nada nem ninguém está formado completamente. Eclesiásticos, religiosos/as e leigos/as precisam sempre de estudar as coisas de Deus, pois se não o fizerem correm o risco de entrar na rotina e cairão com facilidade na reprodução de ideias já feitas e vazias, logo sem resposta aos desafios de cada tempo.

Se nas ciências e atividades humanas é preciso estar em continua atualização tanto mais nas coisas sobre Deus, dado que Ele se revela a quem dele se aproxima e com Ele passa o seu tempo de vida. Nalguns casos pode-se chamar ‘atualização permanente’, noutros dir-se-á que é preciso ter gosto por aprender, mas sempre numa crescente fidelidade ao conhecimento de Deus, nas pequenas como nas grandes coisas do dia-a-dia.

Precisamos de recorrer à doutrina da Igreja (em tantos dos seus aspetos e vertentes), conhecê-la, estudá-la e, sobretudo, vivê-la. São Jerónimo (século IV) dizia que desconhecer a Sagrada Escritura é ignorar o próprio Cristo. Não haverá por aí muitos ignorantes, mesmo sem o reconhecerem?

«A Igreja é apostólica, porque está fundada sobre os Apóstolos. E isso em três sentidos:
– foi e continua a ser construída sobre o «alicerce dos Apóstolos» (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo;
– guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos;
– continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o colégio dos bispos, «assistido pelos presbíteros, em união com o sucessor de Pedro, pastor supremo da Igreja» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 857).

* Eram assíduos à união fraterna (comunhão)

Esta vertente decorre da presença aos irmãos, através da força interior de Deus neles e na sua expressão exterior de uns para com os outros. A comunhão fraternal (koinonia) exprime-se pela comunhão de sentimentos e de fé, bem como pela partilha de bens (cf. At 4, 32-35: tinham tudo em comum e ninguém chamava seu ao que lhe pertencia). Com efeito, esta vivência da partilha fraternal revela e cimenta a força daquela comunhão enraízada na força do Espírito Santo. A unidade – comum-unidade – é um factor bem acentuado na comunidade de Jerusalém e que há de repercutir-se em toda a vivência e testemunho dos discípulos de Jesus.Os sinais de rutura – heresia ou cisma – serão combatidos desde a primeira hora. Nada nem ninguém pode atentar contra a comunhão dos irmãos. A oração sacerdotal de Jo 17 é disso um testemunho por excelência: unidos como irmãos, tal o Pai e o Filho.

Por vezes podemos ser ‘instrumentos’ de divisão – mesmo sem disso nos darmos conta – mais do que seria desejável. Estarmos atentos aos possíveis sinais de rutura da comunhão é tarefa de continua vigilância. Não podemos ficar numa saudosa utopia de que os primeiros cristãos viviam em comunhão e nós hoje não conseguimos tal desiderato; na medida em que o Espírito de Deus faz comunhão, assim devemos comprometer-nos em fazer da nossa vivência em Igreja um testemunho de fraternal caridade ativa e não presumida.

* Eram assíduos à fracção do pão (eucaristia)

Antes de mais é preciso explicar esta expressão naquilo que tem de raiz judaica e como foi vivida no contexto dos cristãos da comunidade inicial.

«Fracção do Pão, porque este rito, próprio da refeição dos judeus, foi utilizado por Jesus quando abençoava e distribuía o pão como chefe de família, sobretudo aquando da última ceia. É por este gesto que os discípulos O reconhecerão depois da sua ressurreição e é com esta expressão que os primeiros cristãos designarão as suas assembleias eucarísticas. Querem com isso significar que todos os que comem do único pão partido, Cristo, entram em comunhão com Ele e formam um só corpo n' Ele» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 1329).

Este terceiro pilar da comunidade de Jerusalém coloca-nos diante da realidade da eucaristia, como o sacramento da fracção do pão. Com efeito, nos evangelhos encontramos referência ‘à fracção do pão’ (cf. Lc 24, 35) numa alusão à eucaristia, bem como em 1 Cor 10, 16: «o pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo?»

Na celebração atual da eucaristia temos e vivemos ainda este gesto da fracção do pão. Com efeito, como diz a Instrução Geral ao Missal Romano (n.º 321), quando se refere a este sinal: «o gesto da “fracção do pão” – assim era designada a Eucaristia na época apostólica – manifesta de modo mais expressivo a força e o valor de sinal da unidade de todos em um só pão e de sinal da caridade, pelo facto de um só pão ser repartido entre os irmãos».

* Eram assíduos às orações

«Estas orações são, em primeiro lugar, as que os fiéis ouvem e lêem nas Escrituras; mas eles actualizam-nas, em particular as dos salmos, a partir da sua realização em Cristo. O Espírito Santo, que assim recorda Cristo à sua Igreja orante, também a conduz para a verdade integral e suscita formulações novas que exprimirão o insondável mistério de Cristo operante na vida, sacramentos e missão da Igreja. Estas formulações desenvolver-se-ão nas grandes tradições litúrgicas e espirituais. As formas da oração, tais como as revelam as Escrituras apostólicas canónicas, continuam a ser normativas da oração cristã» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 2625).

O espaço da realização comunitária era o culto, do qual faziam parte a fracção do pão – a Eucaristia (cf. At 2, 46; 20,7; Lc 24,35) e as orações; no conteúdo, estas deviam ser cristãs (cf. At 1,14; 4,24; 14,11.18), embora os crentes continuassem a frequentar o templo (cf, Lc 24,53).

Feito este percurso comunitário pelos quatro pilares da Igreja primitiva, onde fica a intervenção pessoal de cada pessoa na construção, por cada um de nós, desta Igreja onde nascemos, celebramos, crescemos e vivemos?

De facto, ao refletirmos sobre algumas das figuras dos evangelhos e dos Atos dos Apóstolos (*), cada um a seu modo, um contributo para que a Igreja fosse crescendo. Todos, a partir da referência a Jesus, foram chamados e enviados como testemunhas. O que seria a Igreja sem o contributo de Pedro ou de Paulo, de João ou de André? Que dizer ainda sem a participação de Agostinho de Hipona ou de Bento XVI (Joseph Ratzinger), de Francisco de Assis ou de Teresa de Ávila?

O Espírito Santo derramou em cada um os seus dons, fazendo-os carismas para as comunidades e a Igreja. Hoje, como no passado, temos de amadurecer esta complementar vivência do compromisso pessoal na força comunitária, um e outra fazem de cada cristão um convertido de mãos dadas com seus irmãos e irmãs em igual processo de humilde caminhada na fé, pela esperança e com caridade.



António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário