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sábado, 20 de agosto de 2022

Justiça popular – perigo ou solução?


Por ocasião do surto de incêndios que temos estado a viver – associado às ondas de calor neste verão – ouviu-se um autarca referir que, dentro em pouco, poderá surgir uma espécie de justiça popular, levan

do as pessoas a fazerem justiça pelas próprias mãos. Esta sugestão emerge daquilo que temos tido a sensação de que os ‘criminosos’ incendiários (e noutros casos de malfeitorias a pessoas e bens) continuam sem serem apanhados nem tão pouco castigados condignamente.

1. A possível tendência a recorrer à justiça popular – castigar os prevaricadores pelas próprias mãos, sem esperar o julgamento – não significará a falência da justiça dos tribunais? Estes com tanta morosidade não correm o risco de se tornarem promotores da injustiça? Justiça que não é justa – no tempo devido e nas condições aceitáveis de execução – não é ela mesma fator de injustiça? Até onde irá a promoção do descalabro deste setor essencial da nossa vida em sociedade?

2. Ao falarmos de ‘justiça popular’ vem-nos à memória a figuração – visual e lendária – da designada ‘justiça de Fafe’, essa em que, na forma de estátua (imagem que ilustra este texto) – vemos um indivíduo de pau na mão e puxando-o pela vestimenta do oponente, agredi-o violentamente... Diga-se que este monumento está colocado ao lado do tribunal em exercício naquela cidade nortenha!

Valerá a pena, resumidamente, recuar na lenda deste episódio e conhecer a estória.

A versão mais difundida, desde o início do século XIX, narra um episódio, registado no século XVIII e protagonizado por um visconde de uma freguesia de Fafe, político influente no concelho e homem de não de levar afrontas para casa. Ora, como deputado às Cortes, o visconde terá chegado atrasado a uma sessão daquele órgão monárquico, no que terá sido censurado por um marquês, também deputado, que lhe terá chamado ‘cão tinhoso’. O visconde fingiu que não ouvira o impropério e mostrou-se tranquilo durante a sessão mas, finda aquela, interpelou o marquês, repreendendo-o pelas palavras descorteses que lhe havia dirigido. Em vez de lhe pedir desculpa, o marquês arremessou-lhe as luvas à cara, convocando-o para um duelo. Ao ofendido competia escolher as armas, e quando todos pensavam que iria preferir espadas ou pistolas, como era usual ao tempo, o visconde apresentou-se para o reencontro munido de dois resistentes varapaus. O marquês não sabia manejar esta ‘arma’, enquanto o visconde, perito na arte do jogo do pau, tradicional naquela região, espancou o seu opositor. A gargalhada foi geral e os populares que presenciaram tal ‘acontecimento’ não se contiveram e gritaram: ‘viva a justiça de Fafe... com Fafe ninguém fanfe’!

3. Conhecida esta forma radical de justiça popular poderemos e deveremos introduzir questões quanto ao nosso tempo... algo laxista sobre esta forma de condução social dos interesses pessoais e sociais, que é a justiça. Com efeito, quando vemos processos arrastarem-se dezenas de anos nos tribunais, será isso a forma mais digna de tratar um setor fundamental da sociedade? Os milhentos subterfúgios da lei como que permitem, sobretudo aos ricos, protelar a presença em julgamento em tribunal, podendo com isso prescreverem os processos e originando injustiças quanto aos lesados/vítimas. Os meandros da justiça como que parecem labirintos esconsos, onde os mais espertos deambulam e se escondem e os mais crédulos continuam a ser ofendidos por quem os possa ter enganado ou mentido.

4. Nunca será solução usar, no extremo, os meios físicos para resolver qualquer assunto que seja, embora haja quem considere que uma boas ripeiradas e uns trabefes, dados na hora apropriada, possam corrigir... e esses corretivos já ninguém lhos tirará. No entanto, precisamos de cuidar de que a justiça, feita segundo os moldes da sociedade ocidental e democrática, é a mais recomendável e acertada.

Estimámos que os responsáveis – da política e do legislativo – sejam capazes de fazerem leis exequíveis na hora devida e que os cidadãos possam acreditar que o fazem por bem e por valores bem mais dignos do que as práticas dos delinquintes. Não deixemos cair a justiça na rua!



António Silvio Couto

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