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sábado, 27 de agosto de 2022

Cordatos com ‘os de fora’ – mordazes para ‘os de dentro’?

 

Por estes dias tenho a sensação de que algo de complexo está a acontecer, tanto ao nível das pessoas como das instituições e da Igreja católica em particular.
Numa espécie de afã de simpatia – mais convencional do que verdadeira – vemos pulular uma tendência algo perigosa: somos cordatos (atenciosos, com atitudes de concordância e de boa vontade) para com os ‘de fora’ – autoridades, comunicação social, vizinhança, concorrentes e até adversários – e, ao mesmo tempo mordazes (exigentes, sem desculpa ou até com menos boa disposição) para com os ‘de dentro’ – da mesma família, da mesma Igreja, da mesma terra/paróquia/diocese e com maior conhecimento e proximidade…

1. Andava nestas conjeturas, quando me vieram à lembrança alguns episódios, que podem ilustrar este paradoxo. Recordo a observação de uma filha à mãe: porque és tão simpática lá fora, com os outros e para connosco pareces estar sempre zangada e ríspida? Lembro de memória essa resposta de Bento XVI (papa emérito desde 2013) que ripostava a quem dizia que, por vezes, alguns saem da Igreja – como hão de sair, se nunca entraram? O terceiro momento envolve uma passagem bíblica, essa em que São Paulo dizia, como prevenção, aos cristãos da Galácia: «mas, se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros» (Gl 5,15). Estes três ‘episódios’ quero que possam servir-nos de pontos de diagnóstico para que tentarmos entender a armadilha em que nos temos vindo a enredar.

2. A observação da filha à mãe – de ser uma pessoa para os de fora e outra para os de casa – é muito mais perspicaz do que possa parecer, pois, todos somos tão suscetíveis de conseguirmos assumir papéis (e não são de atores) que, facilmente, entramos em incongruência, senão mental, ao menos emocional. Sempre me constrangeu esse ‘sorriso comercial’, que nos fazem por conveniência, quando vamos comprar qualquer coisa: simpatia nem sempre (se for exagerada e artificial) rima com competência…Esta atitude condiz com o ‘culto da imagem’, seja qual for a etapa da sua estruturação: a imagem que tenho de mim mesmo, a imagem que quero dar de mim, a imagem que os outros têm de mim e a (possível) imagem que nem imagino que fazem de mim. Quantas vezes posso querer ser cordato e não passo de mordaz…sem disso me dar conta!

3. Desgraçadamente a Igreja católica tem vindo a perder ‘clientes’ (fregueses, praticantes ou utentes) à velocidade do crescimento da paganização e da tal mundanização galopante… Sim, vamos mesmo a galope para o abismo… Ora não será com certos tiques de abertura que iremos ‘conquistar’ seja quem for. A dramática divulgação do relatório da Conferência Episcopal Portuguesa – difundido por estes dias – não salvaguarda nada nem ninguém. Os títulos da agência oficial são bons para continuar a desistir e depressa, antes que a loja abra falência.
Eis um excerto da notícia da Agência Ecclesia: «A síntese sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) reconhece uma Igreja “em declínio social” e lamenta que esta não tenha sabido “utilizar a força transformadora do Evangelho numa oportunidade de conversão social, valorizando uma cultura humanista”.

O documento da síntese sinodal da Igreja em Portugal, enviado à Agência Ecclesia, fala numa “atitude demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada e resistente à mudança, que prioriza a manutenção da sua imagem ao invés de preservar a segurança da sua comunidade, surgindo os casos de pedofilia como o exemplo mais evidente”.

“Uma atitude algo soberba e que se mostra pouco disponível para a escuta, marginalizando os anseios e as expectativas dos membros da sua comunidade, atribuindo-lhes, demasiadas vezes, um papel de recetores passivos”, acrescenta o documento.

A síntese, “enviada para a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos dentro dos prazos previstos”, foi elaborada a partir das sínteses das dioceses, grupos e movimentos”, e demais pessoas que se sentiram “interpeladas por esta dinâmica” e que, “de forma direta ou indireta foram questionados e acederam ao desafio, sem medo nem complexos”, resultando num claro desejo de uma “Igreja renovada, mais amiga dos necessitados, mais santa e mais evangélica, que propicie o envolvimento de todos”.

Ora, como diria o adágio nem Maomé falaria tão pior do toucinho. Com efeito, se é este o panorama que temos estamos mesmo prestes a fechar…

Só uma questão: as forças do avental (e afins) dariam de si mesmas um retrato para o exterior tão nefasto. Por que temos de ser nós os miserabilistas de serviço? Não precisamos de fazer-de-conta que está tudo bem, mas não criemos a convicção de desânimo tão generalizado. Onde estão os homens e mulheres do silêncio, pela oração e o testemunho, foram varridos da leitura da Igreja?

4. Porque acredito na fundação divina da Igreja não quero cultivar a maledicência para com os de dentro, embora precisemos todos de grande processo de contínua conversão. Uma sugestão: leiamos a passagem de Jo 17…onde Jesus rezou pela unidade, ontem como hoje. Não fiquemos na espuma dos interesses humanos!



António Sílvio Couto

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