Conta-se, numa espécie de anedótico, que um alto
dirigente lusitano, em visita à Suécia, por ocasião dos eflúvios revolucionários
de abril de 1974, terá deixado escapar: lá, em baixo, estamos a tentar acabar
com todos os ricos; ao que o interlocutor respondeu: nós, aqui, queremos é
acabar com os pobres…
Pelo que temos visto, ouvido e constatado a doença
continua a proliferar em certos setores político-ideológicos,
económico-financeiros e, sobretudo, culturais…deste país que tem sobrevivido de
mão estendida para com a Europa, reclamando direitos, sobrepondo-os aos deveres
de construção de um continente onde o trabalho esteja antes de sucesso ou de
regalias. O sarcasmo estampado no rosto de certos/as deputados/as denúncia que
parece estarmos mais há cerca de cinquenta anos atrás do que numa Europa dos
direitos humanos mais básicos…até prova em contrário!
1. Depois das tranches de fundos europeus dos diversos
quadros comunitários de apoio, desde a adesão à CEE/UE, em 1986, eis que se
avizinha uma catadupa de dinheiro – de 2021 a 2030 – para tentar suster o
descalabro provocado pela pandemia e, de algum modo, como um balão de suporte
para quem governa, pois poderá continuar a manter os seus à tona da água, dado
o afundamento eminente… de tudo e de todos.
Eis alguns dados a reter: 12,9 mil milhões de euros a
fundo perdido; 12,8 mil milhões ainda do quadro ’20-20’, que se estende até
2023; 29,8 mil milhões do ‘quadro financeiro plurianual’ 2021-2027; 1,8 mil
milhões como reforço do fundo de coesão; 15, 7 mil milhões em valor de
empréstimo a que se pode recorrer… perfazendo tudo: 73 mil milhões de euros…
até ao final desta década o montante global com que a Europa vai contemplar
Portugal.
2. Com tanto dinheiro a entrar no nosso país devemos
perguntar: onde se vai investir? A quem contemplar? Como distribuir e com que
critérios? As áreas a contemplar serão as mais prioritárias no presente e para
o futuro? A gestão de tanto dinheiro estará defendida de erros do passado recente?
As entidades fiscalizadoras – tribunal de contas e outras a criar – terão
capacidade de decidir no tempo correto e segundo objetivos mais amplos do que o
‘terreiro do paço’ lisboeta? A máquina rançosa da ‘administração pública’ terá
velocidade e destreza para gerir todos os interesses sem favorecer alguns,
desde já, interessados? O glutão ‘estado’ não será, mais uma vez, o favorecido,
o beneficiado e o beneficiador?
3. Fixemo-nos, então, naquilo que motiva esta reflexão: o
alvo final de tanto dinheiro serão os ricos ou os pobres? Uns ou outros podem
ser o sujeito do investimento de tantos milhões! Será, no entanto, perante
aquilo que quisermos fazer a intenção, o desejo ou a motivação que tudo se
explicará. Se forem os ricos o sujeito prioritário daquele investimento
continuaremos a fazê-los ainda mais ricos, desnivelando as condições humanas,
sociais, económicas e culturais para com os mais pobres, que, por seu turno, se
tornarão ainda mais pobres. Se, por outro lado, forem os pobres o alvo de opção
para aqueles milhões provenientes da UE, então poderão ser criadas condições,
medidas e políticas, de favorecimento contra os pobres, não pelo recurso a
subsídios – como tantas vezes tem sido feito e usado – mas pela valorização
cultural (educativa e profissional) dos intervenientes ativos e não passivos
sem critérios e valores. Com efeito, a tática recorrente de lançar dinheiro
sobre os problemas dos pobres antes de os resolver mais os tem agravado, pois é
preciso ensinar a lidar com as questões, usando os meios económicos como ajuda
e não como mera solução.
4. Muitas das forças políticas, sociais e até religiosas
precisam dos pobres para sobreviverem nas suas tarefas em favor deles. Os
‘pobres’ dão de comer e promoção a muita gente. Por isso, há que tê-los presos
pela boca – baixos salários, devedores de benesses, empregados baratos – e
criando-lhes apetência por regalias que nunca terão, pois se as atingissem
sairiam do role dos pobres e não dariam votos e devotos aos promotores. Por
outro lado, se os ‘ricos’ forem mais humanizados – em linguagem cristã,
evangelizados – poderão colocar os seus bens, dinheiro e capacidades múltiplas em
fazerem diminuir os pobres…atuais e futuros. O problema é estar com eles sem se
deixar aburguesar ou sem perder os critérios em favor dos outros.
Efetivamente combateremos pelos pobres, para os fazermos
sair da pobreza, se os valorizarmos e combateremos pelos ricos, se os
convencermos da sua utilidade em favor dos mais precisados, os outros.
António Sílvio Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário