«Mesmo estando em
nossas casas viveremos esse momento em espírito de peregrinação. O recinto do
santuário estará vazio, mas não deserto. Ainda que separados fisicamente,
estaremos todos aqui espiritualmente unidos como Igreja com Maria, de modo
intenso, com o coração cheio de fé».
Foi deste modo simples, direto e sincero que D.
António Marto, cardeal-bispo da Diocese de Leiria-Fátima, caraterizou a
vivência da noite de vigília do dia 12 de maio passado.
Efetivamente o largo recinto do santuário de Fátima
estava quase às escuras, sem pessoas – como não é costume nas noites e dias de
peregrinação aniversaria – com representantes das vinte e uma dioceses, alguns
elementos eclesiásticos dos serviços, os bispos metropolitas…e ainda com
milhares de velas – representando os peregrinos vivos e defuntos – que iluminavam
o corredor central daquilo a que alguns designam de recinto, por contraste com
as basílicas e a capelinha.
Associando-se a esta ‘peregrinação do coração’ houve
também milhares de velas nas janelas de muitos dos portugueses espalhados por
todo o mundo, numa vivência que teve tanto de inédita quanto de simbólica e
necessariamente de profética.
Em tudo isto ganhou importância e foco a comunicação
social, pois se não fossem as transmissões não teríamos acesso às celebrações.
Embora se não deva meter todos no mesmo saco, houve ‘comunicadores’ que
manifestaram mais interesse pelos pormenores do que pelo essencial. Ver
comentar uma homilia depois de ouvirmos as primeiras frases – sobrepondo-se à
comunicação – só porque já tinham acesso ao texto, não sei se é sério
eticamente… Fixar-se no ‘espetáculo’ – é deste modo que alguns se referem à
procissão das velas – sem atingir o seu significado, talvez seja abordar as
coisas pela superficialidade…Servir uma transmissão sem enquadramento
histórico-espiritual pode não ser bom serviço nem ajudar quem não entenda o que
vê e escuta, embora se possa dirigir a emissão mais para ‘praticantes’ à
distância…
= À luz daquilo que vimos, sentimos e rezamos
podemos colocar algumas questões mais para o futuro do que fixando-nos no
presente atribulado ou lendo o passado com o mínimo de nostalgia.
Que Fátima (local, mensagem e testemunho) vamos ter
a partir de agora? Quem vai alimentar o projeto económico, que por ali vemos ainda
em desenvolvimento? Como educar um sentido comunitário à luz das ‘promessas’
individuais vistas, sentidas e permitidas em Fátima? As devoções que deambulam
por aquele espaço podem ser exportadas sem adaptação adequada para o resto do
país e do mundo? Como um dos fatores identitários dos portugueses no mundo, não
teremos de voltar à genuína mensagem de Fátima para prosseguirmos, como povo
eleito, para difundir a manifestação da Senhora?
= Há frases e pensamentos que podem ser considerados
chavões de mais de um século de história e de vida religiosa a partir de
Fátima. ‘Não foi a Igreja que impos Fátima, foi Fátima que se impos à Igreja’. Vista
como ‘altar do mundo’ para ali peregrinaram quatro dos cinco últimos Papas,
dando-nos a entender que a mensagem é universal e não de teor nacional, que
mais do que a diversidade das línguas nas celebrações tem de ser acolhedoras
das linguagens católicas. À provocação – ‘Fátima nunca mais ou nunca menos?’ –
temos de saber responder com sinais teológicos que não cultivem meramente o
tradicionalismo nem acoitem o que sobra das dioceses. Como lugar de graça, a
Cova da Iria – nome do local da aparição da Senhor – é chamada e ser isso
mesmo: ‘berço da paz’, por entre dúvidas e ignorâncias disfarçadas de velinhas
(queimadas ou a oferecer)…mais de devoção do que como fé esclarecida, celebrada
e comprometida.
= Se a celebração do centenário, em 2017, trouxe
novas oportunidades de aprofundamento da mensagem de Fátima – muito mais do que
o nome de um movimento – nas mais diversas vertentes de vida social, eclesial,
teológica e cultural, o que aconteceu na peregrinação aniversaria de maio de
2020, sob o espetro da pandemia do ‘covid-19’, exige que tenhamos humildade
para interpretar os sinais audíveis, os silêncios percetíveis e as mensagens
que devemos decifrar à luz de um tempo novo porque nunca antes vivido por
ninguém e onde todos ajudamos e somos ajudados a discernir o que Deus nos quer
dizer… Assim o percebamos!
António
Sílvio Couto
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