Grosso modo de 15 de março a 15 de maio, isto é,
dois meses, vivemos em confinamento. Vivemos isso que tem sido a retração de
contatos sociais e de cumprirmos a recomendação de #fiqueemcasa…com que fomos
matraqueados, sem dó nem piedade.
Por outra perspetiva e se atendermos às datas e ao
seu significado podemos ver, numa certa linguagem ‘religiosa’ de incidência
quase social, que o (dito) estado de ‘emergência’ começou a meio da quaresma
(os católicos deixaram de ter missa com assembleia no dia 15 de março, 3.º
domingo quaresmal) e a (pretensa) situação de ‘calamidade’ quase termina no
último dia do ramadão deste ano, a 23 de maio…
Tentemos, numa espécie de retrospetiva, rever alguns
dos aspetos mais relevantes deste tempo de confinamento…até para sabermos
colher lições em relação ao futuro próximo.
- Uma das vertentes mais singulares desta situação
complexa poderemos colocá-la nos vários intervenientes…pessoas
singulares e coletivas, desde as autoridades
(políticas e governativas, de saúde e de segurança, de vigilância e de
observação/notícias, no sentido religioso ou na envolvência social, económica
ou mesmo cultural) até aos cidadãos
(os atingidos pela doença – infetados, internados, recuperados e falecidos – e o
resto que viveu este confinamento), passando pelas diversas etapas psicológicas
de perplexidade, de medo, de ansiedade, de angústia, de reflexão…até à
tentativa de descompressão e de reaprender a viver com ‘algo’ – dizem que é
vírus com diversas mutações – que não conhecemos e nos faz humilhar nas nossas
tão altivas convicções.
- Haverá, no desenrolar do espetro da História,
um tempo que será dedicado a tentar interpretar tudo isto que temos estado a
viver. Já foi assim noutras situações de epidemia, com perdas de vidas humanas,
noutros casos inesperados e de alcance mais ou menos generalizado. Dizem os
entendidos na matéria que há duas formas de equilibrar a demografia: pela guerra
ou pela doença. Daquela temos estado livres, particularmente na Europa, de
forma generalizada, desde há setenta anos. Por entre laivos de algum
desenvolvimento temos conseguido suplantar etapas de doença – muitas delas
provenientes como agora do Oriente – e, com muito esforço disso a que chamaram,
desde o final da segunda guerra mundial, o ‘Estado social’, isto é, o
estado/governo cuida das pessoas atendendo à saúde, à segurança e ao bem-estar
coletivo… a baixo custo.
- Apanhados de surpresa, estamos a enfrentar novos
desafios, colocados a um tempo marcado pelo consumismo. Para uma imensa
maioria uma boa parte do sucesso, de tranquilidade ou de regalias não foi
conquistado nem envolveu qualquer participação na luta, foi-lhe dado sem
esforço e tão pouco desejado, mas antes fornecido como se fosse algo
inquestionável e adquirido para sempre. Esta pandemia fez abalar tudo, desde os
alicerces até aos frutos da ‘nossa’ vida pessoal ou coletiva, onde conta(va)m
mais os direitos do que as obrigações, onde quase tudo se compra sem que tal
tenha sido ganho com trabalho e o empenho correspondente. Quem conheça,
minimamente, a História do passado perceberá que algo idêntico se viveu na
cultura romana – bastará visitar cidades dessa época – onde o epicurismo se
tornou forma de vida e o hedonismo critério moral… Temos estado a viver um
reflorescimento dessas tendências na nossa cultura. Lá como agora, a dimensão
espiritual é subordinada ao imediatismo, à superficialidade, à imposição do
‘eu’ sobre o ‘nós’, sem tempo para gastar com coisas que não sejam palpáveis,
sensitivas e de prazer, não temendo atingir os fins sem olhar a meios…
- Preocupa-me seriamente qual deve ser o papel do cristianismo
em tudo isto que estamos (ainda) a viver. No passado, o cristianismo foi suporte
de uma nova cultura e construiu uma nova civilização…mesmo do pântano social
vigente. Agora – a ver pelas reações e atitudes de muitos dos nossos cristãos,
incluindo responsáveis eclesiásticos – temo que sejamos engolidos por esta maré
apocalíptica e de onde possam surgir alguns messianismos mais integristas e
conservadores, saudosistas da cristandade, enredados numa ‘liturgia’ gongórica
sem mistério nem compromisso de evangelização. Um tanto significativamente não
vimos grande alusão às grandes figuras de proteção em tempos de epidemias, como
São Sebastião ou São Roque. Não foi tão claro quanto devia ter sido a
envolvência no suporte de fé em Deus como seria expetável… Tirando a imagem
impressionante do Papa Francisco na tarde de 27 de março, na Praça de São
Pedro, pouco mais foi profético de forma questionadora de tudo e de todos!
António Sílvio Couto
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