Por estes dias serão número de programa de festas à
mistura com transmissões televisivas, tanto na capital, como noutros locais
onde se vivem festejos ditos populares. As ‘marchas’ exibem-se como se fossem
rótulo de qualidade das festas de Lisboa, mas também em paragens tão diversas
como nalguns países apelidados de ‘língua oficial portuguesa’.
Com referência ao início mais visível e organizado ao
tempo do ‘Estado novo’, em 1932, as marchas populares já se realizariam no
século dezoito…em sintonia com as festas ‘sanjoaninas’ ao ritmo do solstício do
verão. A partir de 1958, às marchas juntaram-se os ‘casamentos de Santo
António’.
De algum modo estas duas componentes – rito de fogo
e festa da fertilidade – estão presentes nas ‘marchas populares’ e, nos
posteriormente organizados, ‘casamentos de Santo António’, a cuja tutela se
entregava alguma da influência e da proteção desta vertente ligada à vida e à
família…
Se bem que na sua expressão quase-religiosa os
‘santos populares’ tenham alguns resquícios de paganismo, com a introdução do
recurso aos santos do mês de junho – S. António, S. João e S. Pedro – se quis
configurar uma espécie de sociedade profana com laivos de cristandade, isto é,
onde uma boa parte usufrui daquilo que talvez desconheça, ignora ou mesmo nem
queira saber o significado, quedando-se na festa pela festa…
= Eis algumas questões sobre este tema das ‘marchas
populares’. Porque será que se dá tanta importância, ainda hoje, às marchas
populares? Que têm elas de tão específico para ser promovidas, organizadas e
realizadas com tanta profusão de meios e de adereços? Mesmo em tempo (dito) de
democracia porque vinga este género cultural de arte popular? Haverá algo que
explica a prossecução das marchas populares quase nove décadas desde a sua
implementação? Estarão os participantes nas ‘marchas’ conscientes da origem desta
expressão sociopolítica ao longo dos anos? O que faz correr tantos autarcas e
políticos profissionais pela visibilidade na oportunidade de difusão das
marchas populares?
Outras perguntas se poderão colocar, sobretudo, se
sairmos do reduto da origem das ‘marchas’ organizadas e competitivas, que é
Lisboa. Muita da imitação da capital se foi alargando em tantas regiões do
Portugal colonial, que até podemos ver as ‘marchas’ em Angola ou no nordeste
brasileiro.
= Tentemos fazer um pouco de história para percebermos
algumas das estórias… dos nossos ‘santos populares’, onde as marchas têm espaço
e outros interesses se podem misturar com maior ou menor ignorância.
A primeira organização das ‘marchas populares’
deu-se em 1932 através da ação de um jornalista e professor à mistura com o
impulso do responsável da propaganda do regime recém-instalado: era preciso arranjar
um espetáculo que mobilizasse a atenção dos lisboetas, divertindo-os sem
esquecerem as suas raízes. As coletividades dos bairros da cidade foram convidadas
a participar, embora só mais tarde a edilidade tenha vindo a assumir a
responsabilidade do evento e como forma de salvaguardar as tradições dos
respetivos bairros, misturando sabor ruralista com elementos do folclore,
servindo nalgumas épocas os intentos do regime, sobretudo em datas simbólicas
da nossa história coletiva e particularmente de Lisboa.
Deixamos para outros entendidos a composição das
‘marchas’, desde a configuração musical até à disposição dos trajes, colocando
o assento desta questão das ‘marchas’ naquilo que pretendeu ser popular e
talvez natural de um povo que precisa de divertir…
= As marchas populares’ foram transversais à segunda
república e nesta terceira república, em que entramos pela revolução do ’25 de
abril’, dá a impressão de que é preciso refletir sobre o significado atual das
‘marchas’ por forma a não ficarmos nos estereótipos da ‘canção de Lisboa’
(1933) ou do ‘pátio das cantigas’ (1942), que deram identidade e projeção às
‘marchas’…de Lisboa para o mundo, mas que já não usam aqueles clichés nem
linguagens… Como em todas as boas e interessantes iniciativas será sempre
preciso ter capacidade de se reinventar, por forma a termos salutares
tradições, que preservam a nossa identidade na contínua criatividade de todos
pelo respeito de cada um.
António Sílvio Couto
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