Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 10 de junho de 2019

‘Marchas populares’: resquícios do Estado Novo?


Por estes dias serão número de programa de festas à mistura com transmissões televisivas, tanto na capital, como noutros locais onde se vivem festejos ditos populares. As ‘marchas’ exibem-se como se fossem rótulo de qualidade das festas de Lisboa, mas também em paragens tão diversas como nalguns países apelidados de ‘língua oficial portuguesa’.

Com referência ao início mais visível e organizado ao tempo do ‘Estado novo’, em 1932, as marchas populares já se realizariam no século dezoito…em sintonia com as festas ‘sanjoaninas’ ao ritmo do solstício do verão. A partir de 1958, às marchas juntaram-se os ‘casamentos de Santo António’.

De algum modo estas duas componentes – rito de fogo e festa da fertilidade – estão presentes nas ‘marchas populares’ e, nos posteriormente organizados, ‘casamentos de Santo António’, a cuja tutela se entregava alguma da influência e da proteção desta vertente ligada à vida e à família…

Se bem que na sua expressão quase-religiosa os ‘santos populares’ tenham alguns resquícios de paganismo, com a introdução do recurso aos santos do mês de junho – S. António, S. João e S. Pedro – se quis configurar uma espécie de sociedade profana com laivos de cristandade, isto é, onde uma boa parte usufrui daquilo que talvez desconheça, ignora ou mesmo nem queira saber o significado, quedando-se na festa pela festa… 

= Eis algumas questões sobre este tema das ‘marchas populares’. Porque será que se dá tanta importância, ainda hoje, às marchas populares? Que têm elas de tão específico para ser promovidas, organizadas e realizadas com tanta profusão de meios e de adereços? Mesmo em tempo (dito) de democracia porque vinga este género cultural de arte popular? Haverá algo que explica a prossecução das marchas populares quase nove décadas desde a sua implementação? Estarão os participantes nas ‘marchas’ conscientes da origem desta expressão sociopolítica ao longo dos anos? O que faz correr tantos autarcas e políticos profissionais pela visibilidade na oportunidade de difusão das marchas populares?

Outras perguntas se poderão colocar, sobretudo, se sairmos do reduto da origem das ‘marchas’ organizadas e competitivas, que é Lisboa. Muita da imitação da capital se foi alargando em tantas regiões do Portugal colonial, que até podemos ver as ‘marchas’ em Angola ou no nordeste brasileiro.

 

= Tentemos fazer um pouco de história para percebermos algumas das estórias… dos nossos ‘santos populares’, onde as marchas têm espaço e outros interesses se podem misturar com maior ou menor ignorância.

A primeira organização das ‘marchas populares’ deu-se em 1932 através da ação de um jornalista e professor à mistura com o impulso do responsável da propaganda do regime recém-instalado: era preciso arranjar um espetáculo que mobilizasse a atenção dos lisboetas, divertindo-os sem esquecerem as suas raízes. As coletividades dos bairros da cidade foram convidadas a participar, embora só mais tarde a edilidade tenha vindo a assumir a responsabilidade do evento e como forma de salvaguardar as tradições dos respetivos bairros, misturando sabor ruralista com elementos do folclore, servindo nalgumas épocas os intentos do regime, sobretudo em datas simbólicas da nossa história coletiva e particularmente de Lisboa.

Deixamos para outros entendidos a composição das ‘marchas’, desde a configuração musical até à disposição dos trajes, colocando o assento desta questão das ‘marchas’ naquilo que pretendeu ser popular e talvez natural de um povo que precisa de divertir… 

= As marchas populares’ foram transversais à segunda república e nesta terceira república, em que entramos pela revolução do ’25 de abril’, dá a impressão de que é preciso refletir sobre o significado atual das ‘marchas’ por forma a não ficarmos nos estereótipos da ‘canção de Lisboa’ (1933) ou do ‘pátio das cantigas’ (1942), que deram identidade e projeção às ‘marchas’…de Lisboa para o mundo, mas que já não usam aqueles clichés nem linguagens… Como em todas as boas e interessantes iniciativas será sempre preciso ter capacidade de se reinventar, por forma a termos salutares tradições, que preservam a nossa identidade na contínua criatividade de todos pelo respeito de cada um.  

 

António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário