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segunda-feira, 23 de julho de 2018

Amadrinhar o bota-abaixo


Pareciam imagens de outros tempos – apelidados de não-democratas – ver a esposa do chefe de governo amadrinhar o bota-abaixo duma embarcação, por sinal da marinha portuguesa, com a simbologia do momento e do sinal de compromisso com o ato solene…

Quem já tenha estado em episódios idênticos no pretenso ‘batismo’ da embarcação, terá considerado que os ‘atores’ devem ser significativos para com os responsáveis/proprietários, tanto particulares como do setor público. Ora, perante o gesto mais ou menos ensaiado da consorte do governante, pareceu que havia algo a destoar, senão mesmo a contradizer a necessária distância – alguns dirão independência e/autonomia – entre quem governa e os seus familiares… Pouco importa a relação que a tal senhora possa ter com as lides marítimas, mas seria bem mais salutar vermos que não vale tudo, mesmo que isso já pareça estarmos num clima de decrépito conluio sabe-se lá com quê ou com quem…

O amadrinhamento deste bota-abaixo pode e deve ser lido como um ato paradigmático da atual governança, goste-se ou não do registo e da sua leitura que ele pode (ou deve) provocar…    

- É velha, mas acertada, a frase: à mulher de César não basta que seja séria, mas também tem de o parecer. Isso mesmo é aplicável em tantos dos campos de intervenção e de influência daqueles que têm a tarefa de governar ou que ocupam lugares com maior ou menor relevo social, político ou cultural.

É pena que uns tantos se esqueçam, mais depressa do que seria desejável, daquilo que condenavam nos outros, quando eles estavam nos lugares que esses agora ocupam. Com relativa facilidade vemos os moralistas serem alvo das sentenças que, antes, atiravam do seu pedestal quase imaculado…Vemos mais depressa do que seria aceitável que os erros apontados se revertem em desfavor dos julgadores… Vemos capitularem os juízes, quando são apreciados sem dó nem piedade, mesmo sem disso se darem conta… 

- Temos visto que uma razoável teia de comandos se desenvolvem em volta dos governantes – seja qual for a instância em que se encontrem – procurando os lóbis de interesses influenciar quem tem poder. Sempre assim foi e, talvez, assim continue a ser. Ora, será preciso que não se julguem mais espertos os que estão no comando agora, pois bem depressa podem ter de se acomodarem à circunstância de serem mandados. Muito para além da alternância teremos de saber conciliar a coerência com a oportunidade, a verdade com a humildade, a inovação com sequência de tarefas e de projetos… Mal vai quem se considere acima das conjunturas e mesmo das conjugações sociais, políticas e mesmo culturais… 

- Porque acredito que não há meras coincidências, mas antes temos perceber o que há de sinal em cada acontecimento, momento de vida (positivo, menos agradável ou até infausto), encontro ou desencontro, facto ou episódio…também neste aspeto procuro discernir o que há de mais profundo na vida política, social e cultural do nosso país e como isso se exprime na realidade de o viver como nação. Começamos a entrar numa encruzilhada bem mais séria do que possa parecer, pois se os políticos profissionais têm de recorrer às pessoas de família para ‘enfeitar’ atos públicos, algo vai mal tanto na condução como na execução das políticas que deveriam ser de todos e para todos.

 

- Sinceramente espero que ainda possamos ir a tempo de corrigir este processo, que faz de quem governa um reizinho, enquanto ocupa o posto e torna-o numa espécie de postergado, quando daí sai ou é excluído pelo voto popular… O tempo nos dirá o significado mais profundo dum aparente gesto de circunstância, tendo em conta o lugar – os estaleiros – e a entidade para quem foi feito o navio – a marinha portuguesa.

Nada há de inocente na vida, nem mesmo um bota-abaixo tão singelo, provocador e paradoxal!

 

António Sílvio Couto  


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