De entre
muitas reportagens do tempo de Natal escuitei duas que me deixaram inquieto e
preocupado: na sequência uma da outra viu-se a apresentação duma mesa natalícia
num hotel e na outra a abordagem duma tenda onde foram servidas refeições a
pessoas sem-abrigo… O número para quem se destinavam os serviços era idêntico:
300 pessoas. Os custos claramente diferentes. As razões para uns e para outros
mais do que percetíveis. Os objetivos seriamente de qualidade de estatuto. As motivações
da diferença talvez se possa colocar no âmbito de níveis de sociedade dispare…
Parando
um pouco tentei escuitar o significado destas discrepâncias numa época –
temporal e de significação mais estrita – em que se pretende apelar à
igualdade, à fraternidade, à convivência entre todos, aos direitos sem
diferenças, ao acesso de todos aos bens necessários e suficientes… e tudo o
mais o que envolve, para um cristão, reconhecer que tudo isso advém do mistério
de Jesus, Verbo de Deus encarnado, que fez de todos os homens uma só família.
– Ao
usar a palavra ‘escuitar’ quero incluir neste conceito algo mais do que escutar
como se fosse um ruído ao qual não se presta a devida atenção, mas antes um
cair na conta de que escuto algo que me impressiona e que me exige reflexão
muito para além do superficial das franjas do ouvir sem reparar naquilo que me
é dito e anunciado.
Assim
escuitei aquelas desigualdades como algo que me trouxe à vontade a proposta de
invasão do hotel com preços só atingíveis por uns tantos, abrindo as portas
àqueles homens e mulheres que, metros ao lado, se satisfaziam com algo menos
requintado na forma, mas possivelmente mais quente no conteúdo… Com efeito, não
podemos ficar indiferentes a estes tiques de sociedade onde se agravam as diferenças
entre iguais na cidadania e nas aspirações… Não podemos continuar a requentar a
nossa fé com palavras de circunstância, quando ao lado – mais perto do que
longe – outros são preteridos da mesa da fraternidade humana e social…Não
podemos ignorar estes e tantos outros casos, que nos são servidos pela
comunicação social – umas vezes em jeito de notícia e outras vezes à guisa de
provocação – numa atenção às discrepâncias entre estratos sociais e até num
escalonamento como se fossem classes…
Nem que
seja de forma breve deixamos aqui essa ‘estória’ colocada entre as piedades bracarenses.
Um certo sapateiro, membro duma irmandade das que participam nas solenidades da
semana santa, depois de ter feito o seu papel na procissão, já se encaminha
para a saída da Sé, quando abriu, por acaso, uma porta, dando de caras com os
responsáveis da irmandade em lauto banquete, tendo ele ripostado, no seu
português meio atrapalhado: ‘ou haja moralidade ou comamos todos’!
Interpretação: todos têm os mesmos direitos e não só os mais categorizados em
hierarquia podem usufruir de benesses e prebendas…
– Neste
país em que vivemos há, gradualmente, uma propensão para que uns sejam mais
beneficiados do que os outros: uns parecem ter pele mais sensível do que os
demais. Uns julgam-se no direito de proteger os seus, mesmo que isso possa
ofender as mínimas condições dos que não fazem parte do seu círculo de simpatia
ou de categoria social, económica ou ideológica. Uns quantos nos têm pejo nem
vergonha de exibirem as suas farpelas de etiqueta, enquanto vão sendo
beneméritos com o desentulhar do guarda-roupa fora de moda. Há por aí muita
gente que, mesmo escutando (sem escuitar) as pregações religiosas, ainda não
entendeu que podem ostentar ofensas às menores possibilidades dos seus vizinhos
ou parceiros de emprego.
Por
mínima decência será sempre de cuidar em não permitirmos que os nossos gestos,
palavras ou a mais singela apresentação possam criar desigualdades entre as
pessoas, pois nem todos terão as nossas posses mais comparáveis, pois aquilo
que temos deverá sempre enquadrar-se no projeto de Jesus, Ele que em tudo foi,
viveu e se orientou pelos critérios da pobreza, onde o mais grave é o apego às
coisas e àquilo que possa levar-nos ao egoísmo e à ostentação.
O Natal
é, por isso, tempo propício para nos avaliarmos e questionarmos, pois em muito
daquilo que vivemos há como que um perigo de ofuscarmos a nudez de Jesus e de
não O deixarmos ocupar o lugar que merece na nossa vida pessoal, familiar,
eclesial ou social. O Natal não pode ser só exterior, tem de gerar conversão!
António Sílvio Couto
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