Os atos
mais recentes dalguns setores sociais parecem denunciar que algo vai mal na
vida duns tantos, pois parecem preferir a morte à vida, os mortos aos vivos,
seja nos contactos mais sérios, seja nalguns momentos da vida…cultural, cívica
e social.
Desde
logo ‘necrofilia’ quer dizer ‘amor’ (filia) pelos ‘mortos’/cadáveres (nekros)
e, embora lhe seja dado um certo teor de âmbito sexual, poderá ter um alcance
etimológico de contacto com mortos, com os lugares onde eles possam estar, como
cemitérios ou outros, tendo com isso e nisso algum prazer…
O
episódio do jantar de gala de enceramento da ‘Web summit’ 2017, no átrio
principal da igreja de Santa Engrácia – indevidamente reduzido a panteão –
‘pan’ (todo), ‘teon’ (deuses) – nacional, que se alarga a mais espaços, como os
mosteiros dos Jerónimos, da Batalha e de Santa Cruz – trouxe à discussão algo
que tem tanto de interessante, quanto de mais fundo do que a mera coincidência
de reações e de discussões mais ou menos fundamentalistas.
Tirada a
possível carga economicista que se quis dar ao episódio, teremos de ir um pouco
mais adiante na descoberta de certos factos e do seu significado. Com efeito,
se já os espaços de repouso dos restos mortais de alguém não merecem o mínimo de
respeito, talvez estejamos a abrir uma nova caixa de pandora, onde nada nem
ninguém estará a salvo. Sem qualquer laivo de humor negro, seria de questionar
se não poderá haver um possível réveillon nalgum desses cemitérios espalhados
por todo o país e que são dignos espaços museológicos dentro da arte e do
estilo…
Ora, depois
duma espécie de tanatofobia, dá a impressão que se prepara um novo ciclo em que
a morte será como que desmistificada senão mesmo se andará mais na área da
tanatolatria, isto é, em busca duma estética da morte e daquilo que a ela pode
conduzir. Repare-se no incremento do apelidado ‘dia das bruxas’ e do folclore que
à sua volta se tem vindo a desenvolver: mais do que uma brincadeira infantil,
estamos a semear sinais de culto da morte, senão de forma clara ao menos de
forma tácita. Os adereços do horrível – em meu entendimento – com que se faz
essa quase ‘celebração’ apontam mais para uma cultura da morte do que da vida.
Diga-se: parece que se vulgarizou a morte e não como referência para se
conduzir na vida, mas como referencial de conduta social e cultural.
A
ocupação do átrio da igreja de Santa Engrácia para eventos sociais e bem pagos
tem feito reverter para o estado algumas somas económicas e nem as reações mais
indignadas de certos intervenientes políticos salvaguardam a indignidade em
serem usados estes espaços que ainda eram redutos de bom senso e não estavam
expostos à voragem mais economicista. Com efeito, os episódios recentes e os
mais antigos como que revelam que o fator dinheiro se sobrepõe aos valores
humanos e éticos…seja qual for a governança – estatal ou camarária – que o
permita, tolere ou incentive.
Torna-se,
por isso, urgente reconsiderar sobre as causas que motivam tantos dos nossos
governantes, pois, na maior parte dos casos, não olham a meios para atingirem
os seus fins, sejam tácitos ou explicitados. Uns precisam de dinheiro, outros
auspiciam fama e honrarias; uns tantos querem aparecer nem que seja à custa de
vilipendiarem os valores pátrios, outros usufruem dos proventos e clamam por
moralidade, quando se deixaram prostituir pelo vil metal; uns correm a verberar
quem ousou mudar as regras, outros deixam que as mesmas regras possam estar no
topo da venda de anúncios de empresas de catering…desde que sejam eles os
beneficiários!
A
vergonha maior é que se vai brincando com aquilo que nos devia fazer refletir:
a morte e as condições de vida em que nos desenvolvemos. Há por aí muita gente
que precisa duma terapia de humildade/humilhação, dado que, vivendo na
superficialidade, vão-se entretendo a discutir fait-divers, que farão corar de
pasmo quem ainda tenha algo que faça refletir sobre o essencial da existência…
Assim com
tanta vulgaridade em tratar estes assuntos, quem não temerá pelo futuro deste
país de brandos costumes e de canções de escárnio-e-de- maldizer? Esta é a
nossa especialidade coletiva…escarnecer e ousar brincar com coisas muito
sérias. Assim não a deixemos adormecer com conluios e jogadas de oportunismo!
António Sílvio Couto
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