Este é o título dum
romance de Camilo Castelo Branco, publicado em 1862 – há cento e cinquenta e
cinco anos – no qual se referem etapas/épocas da vida do personagem principal
até à morte... A fase do coração narra os amores enganadores e desfeitos de
Silvestre Silva, vividos numa Lisboa libertina. A fase em que a cabeça se
sobrepõe ao coração, retrata essa etapa em que o protagonista faz uma
aproximação às herdeiras ricas do Porto. Por último, a vertente do estômago
refere-se ao Silvestre cansado das solicitações citadinas e que procura refúgio
em Soutelo, terra dos seus antepassados.
As mais de duas
centenas de páginas do romance camiliano poderiam ser agora apropriadas às
múltiplas leituras dos resultados eleitorais das recentes autárquicas...sobretudo
se tivermos em conta as multiformes facetas dos vencedores: figurados que foram
já pelo coração, depois aturdidos por alguma dor de cabeça – de que todos
viemos a pagar as consequências! – e, nos tempos mais próximos (antes e depois),
intencionados a darem conforto aos apetites mais ou menos insaciáveis do estômago...
A correta
concatenação destas várias dimensões – coração, cabeça e estômago – ajudar-nos-iam
a ter opções mais acertadas e bem discernidas não só para deixarmos emergir o
que nos interessa, mas essencialmente para que se possa manifestar aquilo que
nos deve guiar, incentivar e impulsionar nas escolhas e no desenvolvimento do
bem comum.
= Partamos, então,
das palavras supra enunciadas...para tentarmos elucidar alguns aspetos mais
subtis, que poderemos encontrar dissiminados nas eleições autárquicas, tendo em
conta o antes de (tempos de campanha), o durante (votação) e o depois (duração
do mandato):
* Coração – com que habilidade se podem
manipular os diversos intentos emocionais/afetivos, podendo levar os mais incautos
eleitores a darem voto de confiança a quem os possa ludibriar... desde que se
coloque um pouco de emoção. Com efeito, as promessas de campanha são feitas mais
ao jeito da emotividade do que da racionalidade...mesmo que haja uma razoável
desconfiança, envolvida nas fímbrias mais ténues do coração... À boa maneira do
Silvestre do romance de Camilo, assim muita leviandade da capital – lugar e
posicionamento – pode fazer enganar os intuitos mais simples, tornando-os algo
vulneráveis pela manipulação de arranjos e de desejos de ocasião!
* Inteligência – esta fundamental
faculdade da pessoa humana pode ser, com alguma subtileza, quase revertida da
sua função de pensar, se for considerada no contexto de ser reduzida àquilo que
queremos que seja feito: por mais vezes do que seria desejável vemos ser usada
a inteligência confundida com esperteza, numa espécie de antecipação aos outros
daquilo que eles irão descobrir se pensarem um pouco mais. Em quantas situações
se deixa que a inteligência seja ofuscada pelo oportunismo e até a
inconveniência. À semelhança do protagonista do romance camiliano, vemos uns
tantos pretenderem suplantar os outros na habilidade em se acercarem das
riquezas alheias...mesmo que à socapa!
* Estômago – este simbolismo de sucesso –
desejado, concretizado ou pretendido – conquista muitos votos e os ardilosos em
os conseguirem exercer com habilidade. Talvez tenha sido pela satisfação das
pretensões do estômago – ter que comer, que beber e uns cobres para passear –
que foram ganhas as últimas eleições. Aconchegados os estômagos, cabeça e
coração como que se desligam das reivindicações... mesmo as mais ideológicas e
significativas. Com mais dinheiro agora, pode-se afrouxar a exigência, pois já
se tem o necessário e suficiente para viver desafogado... Talvez se esteja a
pensar com horizontes muito redutivos e quem governa sabe como isso conquista
votos e faz ganhar eleições... Amanhã poderemos voltar à exigência, mas, desde
que nos convençam que a austeridade já ‘acabou’ há que gozar sem atender ao
futuro...mais incerto, rigoroso e sombrio.
As eleições
autárquicas de 2017 foram ganhas pelo estômago. A cabeça precisa de voltar a
pensar... o futuro. O coração tem pressa em sentir...as razões do passado. O
presente é muito curto e breve!
António
Sílvio Couto
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