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quarta-feira, 13 de maio de 2020

Fátima: vazio, não deserto!


«Mesmo estando em nossas casas viveremos esse momento em espírito de peregrinação. O recinto do santuário estará vazio, mas não deserto. Ainda que separados fisicamente, estaremos todos aqui espiritualmente unidos como Igreja com Maria, de modo intenso, com o coração cheio de fé».

Foi deste modo simples, direto e sincero que D. António Marto, cardeal-bispo da Diocese de Leiria-Fátima, caraterizou a vivência da noite de vigília do dia 12 de maio passado.

Efetivamente o largo recinto do santuário de Fátima estava quase às escuras, sem pessoas – como não é costume nas noites e dias de peregrinação aniversaria – com representantes das vinte e uma dioceses, alguns elementos eclesiásticos dos serviços, os bispos metropolitas…e ainda com milhares de velas – representando os peregrinos vivos e defuntos – que iluminavam o corredor central daquilo a que alguns designam de recinto, por contraste com as basílicas e a capelinha.

Associando-se a esta ‘peregrinação do coração’ houve também milhares de velas nas janelas de muitos dos portugueses espalhados por todo o mundo, numa vivência que teve tanto de inédita quanto de simbólica e necessariamente de profética.

Em tudo isto ganhou importância e foco a comunicação social, pois se não fossem as transmissões não teríamos acesso às celebrações. Embora se não deva meter todos no mesmo saco, houve ‘comunicadores’ que manifestaram mais interesse pelos pormenores do que pelo essencial. Ver comentar uma homilia depois de ouvirmos as primeiras frases – sobrepondo-se à comunicação – só porque já tinham acesso ao texto, não sei se é sério eticamente… Fixar-se no ‘espetáculo’ – é deste modo que alguns se referem à procissão das velas – sem atingir o seu significado, talvez seja abordar as coisas pela superficialidade…Servir uma transmissão sem enquadramento histórico-espiritual pode não ser bom serviço nem ajudar quem não entenda o que vê e escuta, embora se possa dirigir a emissão mais para ‘praticantes’ à distância… 

= À luz daquilo que vimos, sentimos e rezamos podemos colocar algumas questões mais para o futuro do que fixando-nos no presente atribulado ou lendo o passado com o mínimo de nostalgia.

Que Fátima (local, mensagem e testemunho) vamos ter a partir de agora? Quem vai alimentar o projeto económico, que por ali vemos ainda em desenvolvimento? Como educar um sentido comunitário à luz das ‘promessas’ individuais vistas, sentidas e permitidas em Fátima? As devoções que deambulam por aquele espaço podem ser exportadas sem adaptação adequada para o resto do país e do mundo? Como um dos fatores identitários dos portugueses no mundo, não teremos de voltar à genuína mensagem de Fátima para prosseguirmos, como povo eleito, para difundir a manifestação da Senhora?       

= Há frases e pensamentos que podem ser considerados chavões de mais de um século de história e de vida religiosa a partir de Fátima. ‘Não foi a Igreja que impos Fátima, foi Fátima que se impos à Igreja’. Vista como ‘altar do mundo’ para ali peregrinaram quatro dos cinco últimos Papas, dando-nos a entender que a mensagem é universal e não de teor nacional, que mais do que a diversidade das línguas nas celebrações tem de ser acolhedoras das linguagens católicas. À provocação – ‘Fátima nunca mais ou nunca menos?’ – temos de saber responder com sinais teológicos que não cultivem meramente o tradicionalismo nem acoitem o que sobra das dioceses. Como lugar de graça, a Cova da Iria – nome do local da aparição da Senhor – é chamada e ser isso mesmo: ‘berço da paz’, por entre dúvidas e ignorâncias disfarçadas de velinhas (queimadas ou a oferecer)…mais de devoção do que como fé esclarecida, celebrada e comprometida. 

= Se a celebração do centenário, em 2017, trouxe novas oportunidades de aprofundamento da mensagem de Fátima – muito mais do que o nome de um movimento – nas mais diversas vertentes de vida social, eclesial, teológica e cultural, o que aconteceu na peregrinação aniversaria de maio de 2020, sob o espetro da pandemia do ‘covid-19’, exige que tenhamos humildade para interpretar os sinais audíveis, os silêncios percetíveis e as mensagens que devemos decifrar à luz de um tempo novo porque nunca antes vivido por ninguém e onde todos ajudamos e somos ajudados a discernir o que Deus nos quer dizer… Assim o percebamos!  

 

António Sílvio Couto

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