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domingo, 24 de maio de 2020

Entre o Papa e o rapper




Neste tempo assaz complexo que temos estado a viver de confinamento originado pelo coronavírus ‘covid-19’ dá a impressão que estamos mais suscetíveis de refletir e mesmo de discernir os sinais dos tempos nas coisas desta época.

Tenho bem marcado na minha memória – poderá ser até o mais impressionante de tudo isto – a simbologia do Papa Francisco a caminhar só, ao cair daquela tarde de chuva, na Praça de São Pedro (Vaticano), no dia 27 de março, nesse momento marcante de oração de intercessão pela pandemia…com as palavras e sinais que daí decorreram. Muito mais do que um episódio pretensamente religioso, aquilo que o Papa fez envolve uma leitura que exige ser descodificada, tanto no conteúdo como na forma: no conteúdo pelas palavras ditas – estamos todos no mesmo barco ou pelo apelo à intervenção divina; pela forma por aquilo que nos quis referir sobre a fragilidade de todos, começando pelos responsáveis e envolvendo todos os outros, seja qual for a idade, a condição social ou mesmo a capacidade de leitura atual e para o futuro…

Por outro lado, tenho ficado muito apreensivo sobre a significação mais profunda das imagens algo exuberantes de um rapaz com menos de vinte anos, dito de ‘rapper’, onde se misturam palavras e expressões, sinais e impressões de alguém que vive (vivia) num mundo onde certos códigos comuns estarão um tanto fora da normalidade. Terá sido isso que se conjugou para que tenha sido morto, com laivos de atrocidade…à mistura com um certo exibicionismo de riqueza, não se sabendo se verdadeira, se inventada ou até manipulada.

Dizem que estes dois factos poderão ser contemporâneos nas datas, dado que o rapper foi dado como desaparecido em meados do mês de março. Seja como for este acontecimento funesto tem algo de misterioso deve-nos fazer ir um tanto mais ao fundo no seu significado mesmo social.

= Não queremos colocar as duas figuras em contraposição, mas antes como possíveis ‘guias’ de leitura dos contraditórios do nosso tempo, sem recorrermos ao juízo barato nem com quaisquer tendências morais. Com efeito, que lições podemos colher de um e de outro? A ‘solidão’ do Papa tem algo a ver com a paixão solitária de Jesus? A exuberância do rapper fala-nos dos objetivos de vida (e não só) dos nossos jovens? A caminhada titubeante do sumo pontífice exibe a Igreja na sua linguagem não-percetível pelo mundo? Os artefactos que o rapper ostentava revelam as intenções mais subtis da nossa juventude, crente ou agnóstica? A disponibilidade o Papa para assumir ser a voz tribunícia de todos consegue captar a atenção da maioria? A imitação do rapper colhe mais efeitos do que o possível desacordo de quem possa pensar de forma diferente dele? A linguagem de simplicidade do Papa não entrará em confronto de significação com a postura do rapper e seus seguidores?

= Estamos perante dois claros estilos de vida e isso não tem a ver só com a idade – o Papa tem mais de oitenta anos e rapper falecido menos de vinte – mas com os possíveis critérios e valores de conduta, atendendo ao processo educativo, as motivações e até à definição de objetivos ou mesmo analisando o substrato cultural.

Para muitos dos jovens da nossa sociedade parece que tudo é fácil, desde o dinheiro até ao conforto, passando ainda como dado adquirido, mas que, por ocasião desta pandemia, se viu estar em forte perigo, tal como a saúde, a segurança ou mesmo a sobrevivência económica nacional e internacional. Urge, por isso, comunicar a todos quantos fazem da contestação – social, política, sindical ou profissional – o critério de conduta que há muita outra gente que não tem o essencial e que eles podem estar a desperdiçar as oportunidades, pelas quais não tiveram de lutar o mínimo.

Certos setores da reivindicação têm de ser mais lógicos – dizemo-lo em relação às questões europeias e outras – pois se não querem o modelo de Europa que temos porque continuam a lançar candidatos para lugares que contestam. Não seria mais acertado não perderem o tempo com coisas que rejeitam em vez de indistintamente disso usufruírem?

Quem porá juízo na cabeça de tantas pessoas que continuam a pretender influenciar os outros com o ridículo da sua exibição de novo-riquismo? O rapper, dizem, foi vítima dessa ostentação. Aprendamos…     

  

António Sílvio Couto

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