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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Entre a quaresma e o ramadão…em confinamento


Grosso modo de 15 de março a 15 de maio, isto é, dois meses, vivemos em confinamento. Vivemos isso que tem sido a retração de contatos sociais e de cumprirmos a recomendação de #fiqueemcasa…com que fomos matraqueados, sem dó nem piedade.

Por outra perspetiva e se atendermos às datas e ao seu significado podemos ver, numa certa linguagem ‘religiosa’ de incidência quase social, que o (dito) estado de ‘emergência’ começou a meio da quaresma (os católicos deixaram de ter missa com assembleia no dia 15 de março, 3.º domingo quaresmal) e a (pretensa) situação de ‘calamidade’ quase termina no último dia do ramadão deste ano, a 23 de maio…

Tentemos, numa espécie de retrospetiva, rever alguns dos aspetos mais relevantes deste tempo de confinamento…até para sabermos colher lições em relação ao futuro próximo.

- Uma das vertentes mais singulares desta situação complexa poderemos colocá-la nos vários intervenientes…pessoas singulares e coletivas, desde as autoridades (políticas e governativas, de saúde e de segurança, de vigilância e de observação/notícias, no sentido religioso ou na envolvência social, económica ou mesmo cultural) até aos cidadãos (os atingidos pela doença – infetados, internados, recuperados e falecidos – e o resto que viveu este confinamento), passando pelas diversas etapas psicológicas de perplexidade, de medo, de ansiedade, de angústia, de reflexão…até à tentativa de descompressão e de reaprender a viver com ‘algo’ – dizem que é vírus com diversas mutações – que não conhecemos e nos faz humilhar nas nossas tão altivas convicções.

- Haverá, no desenrolar do espetro da História, um tempo que será dedicado a tentar interpretar tudo isto que temos estado a viver. Já foi assim noutras situações de epidemia, com perdas de vidas humanas, noutros casos inesperados e de alcance mais ou menos generalizado. Dizem os entendidos na matéria que há duas formas de equilibrar a demografia: pela guerra ou pela doença. Daquela temos estado livres, particularmente na Europa, de forma generalizada, desde há setenta anos. Por entre laivos de algum desenvolvimento temos conseguido suplantar etapas de doença – muitas delas provenientes como agora do Oriente – e, com muito esforço disso a que chamaram, desde o final da segunda guerra mundial, o ‘Estado social’, isto é, o estado/governo cuida das pessoas atendendo à saúde, à segurança e ao bem-estar coletivo… a baixo custo.

- Apanhados de surpresa, estamos a enfrentar novos desafios, colocados a um tempo marcado pelo consumismo. Para uma imensa maioria uma boa parte do sucesso, de tranquilidade ou de regalias não foi conquistado nem envolveu qualquer participação na luta, foi-lhe dado sem esforço e tão pouco desejado, mas antes fornecido como se fosse algo inquestionável e adquirido para sempre. Esta pandemia fez abalar tudo, desde os alicerces até aos frutos da ‘nossa’ vida pessoal ou coletiva, onde conta(va)m mais os direitos do que as obrigações, onde quase tudo se compra sem que tal tenha sido ganho com trabalho e o empenho correspondente. Quem conheça, minimamente, a História do passado perceberá que algo idêntico se viveu na cultura romana – bastará visitar cidades dessa época – onde o epicurismo se tornou forma de vida e o hedonismo critério moral… Temos estado a viver um reflorescimento dessas tendências na nossa cultura. Lá como agora, a dimensão espiritual é subordinada ao imediatismo, à superficialidade, à imposição do ‘eu’ sobre o ‘nós’, sem tempo para gastar com coisas que não sejam palpáveis, sensitivas e de prazer, não temendo atingir os fins sem olhar a meios…

- Preocupa-me seriamente qual deve ser o papel do cristianismo em tudo isto que estamos (ainda) a viver. No passado, o cristianismo foi suporte de uma nova cultura e construiu uma nova civilização…mesmo do pântano social vigente. Agora – a ver pelas reações e atitudes de muitos dos nossos cristãos, incluindo responsáveis eclesiásticos – temo que sejamos engolidos por esta maré apocalíptica e de onde possam surgir alguns messianismos mais integristas e conservadores, saudosistas da cristandade, enredados numa ‘liturgia’ gongórica sem mistério nem compromisso de evangelização. Um tanto significativamente não vimos grande alusão às grandes figuras de proteção em tempos de epidemias, como São Sebastião ou São Roque. Não foi tão claro quanto devia ter sido a envolvência no suporte de fé em Deus como seria expetável… Tirando a imagem impressionante do Papa Francisco na tarde de 27 de março, na Praça de São Pedro, pouco mais foi profético de forma questionadora de tudo e de todos!   

 

António Sílvio Couto

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