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terça-feira, 13 de agosto de 2024

Qual o significado de certas aligeirezas no luto?

 

Marcante de uma cultura assaz rural, conheci pessoas (de família e não só) que viveram em luto permanente, pesado e quase tortuoso desde que algum familiar morrera…sobretudo as mulheres que vivenciaram o luto para o resto da vida, no caso do defunto ser o marido… Hoje, horas decorridas sobre a morte de um (pretenso) ente querido, tudo roda na mesma, sem qualquer sinal de constrangimento – pelo menos exterior – e surfando a onda da leveza, assim parece, exteriormente.

1. Não pretendo fazer qualquer juízo nem do tempo do luto prolongado nem agora do luto aligeirado, antes tentar entender os tempos e com isso ajudar-me a perceber os seus sinais. Dirão alguns mais conservadores das razões das coisas e, porque não, de uma certa religiosidade da vida: afinal a morte consta da vida, mas é uma rutura com os vivos e isso traz sofrimento, dor e ferida. Certas visões tétricas da existência conseguiam manter algum domínio sobre as consciências, servindo mesmo um Deus triste e de morte, isso poderia ser ainda o ganha-pão dos ministros da Igreja, alicerçada mais no funerário do que no gozo da vida e das suas incidências. Será que isto explica o sacudir do tempo de velório – espaço usado para recordar (rezar também) quem partiu e ajudar os que ficaram a refletir sobre a sua vida – a rapidez das ‘cerimónias’ fúnebres – quando as há – e com a mais recente difusão do recurso à cremação? Em menos de vinte anos ao sul do Tejo dois terços dos funerais – segundo as agências funerárias a operar no terreno – deixaram de ir para o cemitério para seguirem, em muitos casos, do hospital para o crematório… Foi isso que vimos e vivemos na pandemia e deixou fortes implicações nos comportamentos das pessoas no seu dia-a-dia de trato com a morte e o luto.

2. De facto, a privatização e o anonimato da morte está aí introduzida na nossa cultura: hoje quase ninguém morre na sua casa, antes num hospital, sem haver quem aconchegue o moribundo e, em muitas das situações, num quase desprezo de tudo e de todos. A frieza de um papel a comunicar o falecimento de alguém quase se tornou um rito sem marca humana. Por vezes tem mais cobertura e propaganda a perda de um cão ou de um gato, ditos de ‘estimação’ do que uma comunicação do falecimento de uma pessoa! Isto será tanto mais grave quanto as pessoas não se advertiram ainda que estão a semear para elas mesmas o que fazem, por agora, aos outros: alguém gostará de vir a morrer só e abandonado? Se até aos animais se dá o mínimo de conforto nas horas de maior sofrimento – eles sentem-no, bem o sabemos – porque descuidarmo-nos entre os humanos?

3. Nitidamente não teremos feito tudo e o essencial, ao nível da Igreja católica para que este processo não tivesse ganho as proporções que já sentimos. Felizmente se vai despojando do sentido terrífico a referência ao sacramento da Unção dos doentes, em certas épocas visto mais como se fosse o carimbo derradeiro para a viagem final. Despojamos um tanto a carga emocional, mas será que lhe demos a força de sacramento de cura e de vida? Torna-se urgente – e talvez imprescindível – que os próprios padres sejam fiéis recetores e não meramente ministros deste sacramento da Igreja. Muita coisa mudaria, de verdade!

4. Regressando ao tema do luto, ele é necessário, compreensível e humanamente essencial. A capacidade de enquadramento da perda de alguém tem etapas e precisa de tempo. Se soubéssemos entender o itinerário que a Igreja católica propõe para as celebrações ‘rituais’ de defuntos – funeral, sétimo dia e primeiro mês – haveríamos de cuidar daqueles que participam nestas propostas, que nos apontam para um ritmo psicológico e espiritual bem claro e consistente. Deveria ser mais avisado este caminho, podendo ser ainda acompanhado ao nível técnico com a devida regularidade.

5. O processo de luto é integral: envolve a pessoa toda e toda a pessoa…



António Sílvio Couto

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