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terça-feira, 27 de agosto de 2024

‘Demeure’ – fofamente modesto?

 


Os meios digitais vão introduzindo novas palavras, umas vezes de forma rápida, noutros momentos num contexto apelidado de viral e em muitos casos cunhando novas formas de entender o meio em que vivemos ou a forma de nos relacionarmos.

Há dias encontrei uma dessas palavras – um anglicanismo de complexa tradução – ‘demeure’, um termo que significa ser fofo ou contido. A palavra é usada para definir coisas, pessoas, um jeito de ser, agir ou se vestir. Na tradução para o português, a expressão pode ser entendida como “modesto”.

1. Tentando encontrar a origem deste termo conseguimos encontrar a seguinte descrição: uma criadora de conteúdos publicou um vídeo numa rede social explicando como se veste e se maquilha para ir para o trabalho de forma muito ‘demeure’ ou seja, muito modesta e discreta. Essa forma de dizer e de fazer conquistou milhões de visualizações e gerou milhares de comentários, sendo, posteriormente, aplicado este termo ‘demeure’ nas mais díspares situações e ocorrências…

2. Num tempo em que boa parte das pessoas se deixa guiar pelas modas e se tornam quase subalternas de outras personalidades, poderemos encontrar, nesta circunstância, algo que nos possa fazer refletir sobre tantas coisas que vemos, vivemos e sentimos… Efetivamente, hoje, estamos numa sociedade em que rapidamente uma banalidade se pode tornar um assunto muito falado, por vezes, por razões pouco abonatórias ou difundindo-se – dizem que de forma viral, como se fosse um vírus contagiante – com tal velocidade que o criado (coisa ou assunto, tema ou ridículo, caso ou escândalo) ultrapassa o criador (autor sem rosto nem identidade).

3. Estamos, assumidamente, numa encruzilhada cultural senão mesmo civilizacional, pois, aquilo que antes era uma suspeita tornou-se, com facilidade, uma afirmação, onde o visado não consegue defender-se, dado que não sabe quem o ataca ou até difama, na medida em que o recurso à subtileza dos perfis falsos no campo da comunicação gera mais desconfiança do que aceitação, produz mais dúvida do que correção, atiça mais a difusão de inimizades do que de partilha…Mesmo que se pretenda dar boa impressão para com os outros, com normalidade estamos todos na mira da acusação ao menos tácita ou dissimulada.

4. Recorrentemente é possível encontrar pessoas que exibem nas suas redes tentaculares (ditas) sociais dezenas ou centenas de ‘amigos’, mas, de verdade, são episódios de fachada e não dados credíveis. Como se conta de alguém que tinha na lista de ‘amigos’ do facebook centenas de nomes e, na hora de velório, não estava lá ninguém… Deste modo se pode avaliar a credibilidade de certos dados ou ajuizar (sem julgar) dos critérios da (pretensa) amizade. Quem ainda não caiu na realidade de tudo isto e de pior, vive mesmo nesse mundo virtual, onde a mais pequena ofensa se pode tornar motivo de injúria ou de achaque contra quem menosprezou outrem.

5. Vivemos num mundo frágil e onde as fragilidades – expostas, presumidas ou denegridas – valem mais do que as qualidades pessoais ou alheias. Sente-se que, hoje, as pessoas perderam o respeito por si mesmas e para com os outros. Nota-se que o resguardo – em tempos dizia-se pudor – de si e dos outros deixou de contar. Por isso, a vulnerabilidade das pessoas que, ora se lamuriam, ora se enaltecem, quase sempre sem razão para uma ou outra atitude e comportamento. O tal ‘demeure’, entendido como fofo ou modesto, colhe mais do que a verdade de cada para consigo mesmo e no trato com os demais. Parece que andamos a enfeitar-nos com recursos efémeros e usando os outros como servidores de pundonores agravados.

6. O ambiente está montado para que aquilo que conta é mais a boa impressão/imagem – por vezes falsa e falsificada – do que a honestidade para consigo mesmo e a lealdade para com os outros. Verdade a quanto obrigas!



António Sílvio Couto

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