Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Só fizemos o que devíamos fazer (cumprimento do dever versus elogio enganador)

 




«Quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer». Lemos em Lc 17, 10. Esta passagem bíblica contém algo de desconcertante, sobretudo numa época em que se busca o elogio – barato, umas vezes; complexo, noutras; interesseiro, quase sempre – e o reconhecimento com aplausos, palmas e comendas…

Tenho para comigo que o cumprimento do dever ou a alegria do dever cumprido é o maior e mais digno reconhecimento interior e exterior.

1. Quando andamos à procura de elogios não seremos pouco cristãos, ao menos segundo o Evangelho? Quando exercemos essa psicologia do elogio, por tudo ou por coisa pouca, não andaremos a insuflar o enxofre do mal naqueles que deviam ser humildes e não orgulhosos? Quando vemos correr tanta gente para o palco não andaremos a manipular com a pretensão de querer agradecer? Quando facilitamos que nos deem prebendas – mesmo que baratas e sem grande valor – não seremos mais servos da vaidade do que da verdade? Quando assim agimos não seremos mais mundanos do que cristãos?

2. Sinto-me muito indisposto quando vejo pessoas serem agraciadas só porque cumpriram – nalguns casos nem sempre condignamente – o dever. Este deveria ser a motivação de vida e não a exceção do modo de estar. Ora uma sociedade que se deixe fascinar meramente pelos elogios talvez seja, para além de imatura, algo superficial, pois o nosso contentamento deverá vir de sabermos estar onde podemos render mais e melhor e não na ansiedade de ser bajulado pelos outros. Quantas vezes precisamos que os nossos dons sejam postos à prova, que os talentos – humanos ou espirituais – sejam exercidos com simplicidade e não com a pretensão de qualquer reconhecimento alheio: isso seria andar a reboque daquilo que os outros pensam ou veem e não segundo a capacidade de ser útil minimamente aos outros.

3. Fique claro: as homenagens podem servir para adular, para enganar e até para iludir, tanto quem faz como quem recebe. Sou avesso a toda e qualquer atitude que queira fazer dos outros os nossos deuses, na medida em que desejamos ser-lhes agradáveis e com isso recebermos elogios, agradecimentos ou palmas. No tempo em que os foguetes ainda tinham canas, dizia-se: o estralejar dos foguetes, hoje, podem ser as canas a bater-nos, amanhã!

Mesmo ao nível da Igreja católica não andaremos enganados e a querer enganar nesse afã de reconhecimento dos nossos parcos feitos, que mais não passam de garatujas em maré de aprendizagem na escola da vida. Como é triste – e nalguns casos roça o ridículo – aquilo que vemos pulular em certas paróquias e grupos de Igreja. Como nos envergonha – ou assim devia – a luta para que possamos ser mais importantes do que os outros, quando deveríamos ser servos humildes, dedicados e sinceros.

4. «Como se reconhece o servo de Deus? Ele gosta mais de ouvir do que falar. Como está escrito: seja cada um de vós pronto para ouvir, lento para falar. Se for possível, deseje não ter de falar, nem discursar, nem ensinar (…) Põe a tua alegria em escutar a Deus e que só a necessidade te faça falar e não serás semelhante a esse homem que o desejo de falar impede de trilhar o bom caminho. Porque queres falar e não queres ouvir? Estás sempre a sair de ti e tens medo de entrar em ti. O teu mestre está dentro de ti (…) Que as alegrias interiores façam as nossas delícias e não nos entreguemos ao exterior senão por necessidade» – S. Agostinho de Hipona, ’Sermão’ 139, 15.

Este texto de um dos maiores santos da Igreja católica traz-nos lições de compreensão daquilo que somos e como nos devemos comportar cristãmente. Está na hora de terminarmos o espetáculo indecoroso com que vemos certas figuras, figurinhas e figurões pavonearem-se cultivando, alimentando ou servindo elogios de má qualidade, quando o necessário é fazer tudo de forma desinteressada, humilde e verdadeira!



António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário