Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 1 de junho de 2022

Manifestação do Espírito Santo no Pentecostes

 


A manifestação do Espírito Santo, em dia de Pentecostes (1), marca a concretização da promessa de Jesus, em que o Espírito de Deus é derramado sobre a comunidade dos irmãos, reunidos no Cenáculo. Com efeito, «no dia do Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, a Igreja foi manifestada ao mundo. O dom do Espírito inaugura um tempo novo na «dispensação do mistério»: o tempo da Igreja, durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica a sua obra de salvação pela liturgia da sua Igreja, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26). Durante este tempo da Igreja, Cristo vive e age, agora na sua Igreja e com ela, de um modo novo, próprio deste tempo novo. Age pelos sacramentos e é a isso que a Tradição comum do Oriente e do Ocidente chama «economia sacramental». Esta consiste na comunicação (ou «dispensação») dos frutos do mistério pascal de Cristo na celebração da liturgia «sacramental» da Igreja» (2).

Algo novo acontece com a manifestação do Espírito Santo no dia de Pentecostes. A narrativa de São Lucas nos Atos dos Apóstolos tem caraterísticas muito específicas, que devem ser analisadas, tanto à luz das componentes adstritas à festa judaica, como naquilo que a passagem de At 2, 1-13 nos apresenta muito para além das palavras escritas ou mesmo dos conceitos subjacentes...

«1 Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. 2 De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam.
3 Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. 4 Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.
5 Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. 6 Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua.
7 Atónitos e maravilhados, diziam: «Mas esses que estão a falar não são todos galileus? 8 Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? 9 Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, 10 da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, 11 judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!»
12 Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: «Que significa isto?» 13 Outros, por sua vez, diziam, troçando: «Estão cheios de vinho doce» (At 2, 1-13).

Podemos encontrar neste texto elementos prévios de enquadramento do texto na vivência judaica, pois, o povo estava na rua em festa: seja ela de teor mais agrícola – pelos primeiros frutos da terra ou pelos dons recebidos ao longo a ano – seja pela leitura do dom da Lei no Sinai, isso motivava a que Jerusalém fosse ‘invadida’ de povos vindos do mundo civilizado e ligado à religião judaica do tempo. A referência ao ‘vinho doce’ com que interpretaram as manifestações carismáticas pode fazer confundir essa leitura dos primeiros frutos oferecidos a Deus e partilhados com os outros. São Paulo advertirá, em 1 Cor 12, 2, que não se deve confundir a ação do Espírito Santo com outros efeitos, como os do vinho, referindo-se aos cultos dionísiacos em Corinto e noutras cidades gregas daquele tempo.
Vejamos aspetos mais salientes nesta teofania do Espírito Santo, em dia de Pentecostes: 

 

a)‘Som comparável ao de forte rajada de vento’ (v. 2). Tanto em hebraico como em grego é usada a mesma palavra para exprimir espírito e vento: ‘ruah’ e ‘pneuma’, respetivamente (3). A figura do vento simboliza o Espírito Santo, e o fato de o som vir do céu significa que Ele foi derramado da parte de Deus, conforme Jesus havia prometido (cf. Jo 14, 16. 26; 15, 26; 16, 7).9-11. Ele realmente veio do céu, da morada de Deus.

b) ‘Umas línguas à maneira de fogo’ (v. 3). Eles viram línguas à maneira de fogo e que poisaram sobre cada um deles. Na Bíblia o fogo, em várias ocasiões, aparece usado como símbolo da presença divina, realçando a santidade e o juízo de Deus. «O fogo simboliza a energia transformadora dos atos do Espírito Santo. O profeta Elias, que «apareceu como um fogo e cuja palavra queimava como um facho ardente» (Sir 48, 1)... João Batista (...) anuncia Cristo como Aquele que «há de batizar no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3, 16), aquele Espírito do qual Jesus dirá: «Eu vim lançar fogo sobre a terra e só quero que ele se tenha ateado!» (Lc 12, 49). A tradição espiritual reterá este simbolismo do fogo como um dos mais expressivos da ação do Espírito Santo» (4).

c) ‘Começaram a falar outras línguas’ (v. 4), conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Talvez devamos considerar - mesmo pela experiência pessoal dos grupos do Renovamento Carismático, católico ou não - que mais do que línguas (idiomas), este é um assunto do âmbito da linguagem. «O dom de falar outras línguas significa a capacidade que os Apóstolos tinham de se fazerem entender perante outros povos. Assim, o Espírito restabelece, no Pentecostes, a unidade de linguagem que se tinha desfeito com Babel (Gn 11,1-9), prefigurando a universalidade da mensagem cristã» (5).

d) Diversos povos...fascinados pelas maravilhas de Deus (vv. 5-11). Na confluência e reunião que era Jerusalém da multiplicidade de povos e de culturas, vemos que as diversas nações enumeradas desde Este a Oeste, com a Judeia no centro, simbolizam a totalidade do mundo habitado...desde os iniciados até àqueles que estavam a dar os primeiros passos na religião judaica...todos tinham espaço, lugar e expressão na universalidade do cristianismo. 

 

Para percorrer a ação viva e vivificante do Espírito Santo recomendamos a leitura, meditação e oração do livro dos Atos dos Apóstolos, também designado ‘evangelho do Espírito’, saboreando a dinâmica que esse mesmo Espírito fez e faz na Igreja.

 

 

1. No Antigo Testamento, a designada festa do Pentecostes é referida como: Festa das Colheitas (Êx 23.16), Festa das Semanas (Dt 34.22) e Dia das Primícias dos Frutos (Nm 28.26)...três designações progressivas e complementares das vivências do povo de Deus... A designação ‘pentecostes’ tem a ver com a contagem de ‘cinquenta dias depois’ da celebração da Páscoa. Referir esta festa como das colheitas ou das primícias tinha a ver com esse momento em que todo o povo agradecia a Deus as colheitas da terra e Lhe oferecia solenemente os primeiros frutos. Com o passar  do tempo a esta festa de matiz agrícola foi sendo dada a tonalidade de agradecimento a Deus pela entrega da Lei no Sinai, que, nalgumas interpretações, teria acontecido, cinquenta dias depois da libertação do Egito (cf. Ex 19,1). Enquanto a celebração da Páscoa era mais de teor familiar, o Pentecostes abordaria a vertente comunitária e com a participação de todo o povo...em festa.
2. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1076.
3. «O termo «Espírito» traduz o termo hebraico «Ruah» que, na sua primeira acepção, significa sopro, ar, vento. Jesus utiliza precisamente a imagem sensível do vento para sugerir a Nicodemos a novidade transcendente d’Aquele que é pessoalmente o Sopro de Deus, o Espírito divino» – Catecismo da Igreja Católica, 691.
4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 696. «Depois do vento forte, as línguas de fogo (Is 5,24; 6,6-7) evocam também a teofania do Sinai (Ex 19,16-18) e o poder de Deus, que lhes comunica o dom de falar uma linguagem nova que todos serão capazes de entender» - Nota a At 2,3, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos
5. Cf. Nota a At 2, 4 na Bíblia Sagrada dos capuchinhos. Glossolalia - ‘glossa’, língua, ‘lalen’, falar - é um fenómeno recuperado nos movimentos carismásticos/pentecostais e que fundamenta a sua expressão nesta faceta da narrativa do Pentecostes em At 2,4. Na maior parte dos casos faz-se equivaler a glossolalia com o dom das línguas (1 Cor 12, 10. Se bem que seja difícil definir, em conceitos humanos e segundo termos percetíveis em linguagem material, há quem use imagens algo simplistas para se referir ao dom das línguas e, sobretudo, ao canto em línguas, habitual na expressão carismática/pentecostal: seria como uma seara onde o vento faz ondular o trigo numa harmonia coordenada por alguém desconhecido; outros usam a figuração do carrilhão de sinos que parece tocar em confusão, mas cujo terminar há de ser harmonioso e sublime...outras imagens poderão ser apontadas, sempre numa conjugação da diversidade na unidade. Sobre o tema, dada a autoridade de saber e de espiritualidade, ver: Raniero Cantalamessa, Vem, Espírito Criador, Braga, AO, 2009, pp. 300-308

 

António Sílvio Couto

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário