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quinta-feira, 14 de abril de 2022

Comer a Páscoa

 


«Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» (Mt 26,17).

Eis como os discípulos inquiriram junto de Jesus, nas vésperas daquela celebração, o modo e o lugar de a viverem. Ora, teremos de compreender o alcance daquela expressão – ‘comer a páscoa’ – para que não pareça que se lhe dá uma significação meramente material, hedonista e consumista…tão ao gosto do nosso tempo. Efetivamente muitos ‘comem’ a páscoa – isto é, cordeiro, cabrito, borrego, anho…conforme as regiões – no sentido literal do termo ‘comer’ e na figuração da iguaria…

 1. Aquela ‘páscoa’ de que se fala é uma coisa ou um animal, na medida em que se refere que vai ser comida? A dita páscoa será simbólica, tanto quanto ao passado, relativamente ao futuro e na interpretação do presente? Não andaremos a fulanizar – como agora se diz – quando o assunto é de teor particular, mas pode ser envolvido numa dimensão mais ampla? Será digno e correto comer algo que não tenha o sentido mínimo e com o proveito máximo? Numa palavra provocatória: quem comer aquela iguaria pascal sem celebrar, verdadeira e simplesmente, a páscoa no sentido mais genuíno daquilo que é, não será além de hipócrita, oportunista e abusador? Certas simbologias – doces de comer, como ovos e coelhos ou outras – não serão uma verdadeira paganização dos sinais da vida, ao serviço do consumismo algo desenfreado dos nossos dias?

 2. Façamos um percurso histórico-religioso do sentido do ‘cordeiro pascal’, desde a experiência do povo de Israel até ao tempo de Jesus… Foi isso, afinal, que levou os discípulos a fazerem a tal pergunta: onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa’.

A palavra hebraica ‘pesach’ significa 'passar adiante', 'sair', decorrendo da narrativa da décima praga do Egito, segundo a qual Deus ordenou aos hebreus que assinalassem, com o sangue do cordeiro, as portas das suas casas, permitindo, ao anjo exterminador, que passasse adiante, atingindo somente as casas dos egípcios e, de modo particular, os primogénitos dos egípcios, inclusive o filho do faraó (cf. Ex 12, 21-34). A ‘pesach’ indica, portanto, a libertação do povo de Israel do domínio egípcio e o início do seu percurso em direção à terra prometida... Ora essa saída memorável, celebrada em cada páscoa, recordava para além do sinal libertador de Deus, o momento em que os judeus comeram a toda pressa o cordeiro pascal, com cujo sangue tinham tingido as portas das casas onde eles viviam e o anjo exterminador não entrou.
Cada ano esta celebração da Páscoa era, para o povo judeu, um momento de memória familiar e comunitário.
As raízes mais profundas dos sinais, das palavras e dos gestos de Jesus, na Última Ceia, ao celebrar a páscoa judaica e ao introduzir a novidade que a celebração da sua ressurreição significa: Jesus é verdadeiramente o cordeiro pascal, imolado por nós e para nossa salvação.

 3. Tentemos, agora, desmontar essa façanha crescentemente consumista que se atrelou à Páscoa, quase obnubilando as questões essenciais com resquícios de fatores humanos e mundanos, servidos à mesa sem o significado cristão e numa espécie de banquete onde o festejado não passa de um horizontalismo sem crença nem fé. Como é triste ver reduzida a Páscoa à comezaina e ao empanturramento das coisas que podem satisfazer o corpo mas não preenchem o essencial, a alma e o espírito. Com que leveza de critérios e de palavras se introduzem costumes e iguarias sem percebermos o alcance mais profundo do ter e do partilhar.

A Páscoa é muito mais do que jantaradas e festanças onde O festejado foi varrido para debaixo do tapete da conveniência, desde que não incomode os nossos desvarios mais ou menos tolerados. À semelhança do Natal, estamos a usufruir das regalias, mas não assumimos as vertentes mais simples, fraternas e de vida centrada em Deus. Será que alguém se lembra de interpretar os doces – amêndoas, folar, chocolates ou outros – como uma prefiguração da ‘terra prometida, onde mana o leite e mel’, como dizem as Escrituras? A troca de presentes – sobretudo entre afilhados e padrinhos e vice-versa – será algo mais do que um negócio a roçar o interesse materialista? E os ovos de Páscoa terão mesmo a significação da vida que se renova em cada Páscoa? Deixemos de fazer-de-conta com coisas simples e tão sérias…

 

António Sílvio Couto

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