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sábado, 14 de dezembro de 2019

Vergonha



«O senhor deputado utiliza com demasiada facilidade as palavras vergonha e vergonhoso, o que ofende muitas vezes este parlamento e ofende-o a si também».
Foi desta forma ríspida que o presidente do parlamento português passou um ralhete – com a retirada da palavra no hemiciclo – a um deputado que, ao que parece, usa, excessivamente, estes termos nas suas intervenções…por sinal poucas, dado que é sozinho na sua representação partidária. Desta vez falava sobre a questão do amianto nas escolas…em comparação com as verbas usadas para os subsídios vitalícios…
Segundo uma contagem já realizada, o tal deputado usou mais de vinte vezes, desde o início da legislatura (nove sessões), o termo pelo qual foi repreendido… Será que já chega ou não?
Ora – pasme-se – uma outra deputada (de esquerda, em sintonia com o presidente da AR, embora de partido diferente) utilizou, de seguida, a mesma palavra ‘vergonha’ e não recebeu qualquer corretivo da ‘ínclita’ figura que conduz os trabalhos parlamentares… colocando, em seu entendimento, termos aceitáveis e expressões mais ou menos consideradas democráticas no léxico político a frasear nos trabalhos. Isto ainda não chega! 
= Em tempos mais ou menos recuados era costume referir-se: ‘há quem core de vergonha, enquanto outros têm vergonha de corar’!
Deste modo se associava à vergonha algo que poderia ser um tanto ofensivo para a própria pessoa e no seu relacionamento com os outros. Ao servirmo-nos da palavra ‘vergonha’ para falarmos sobre os outros como que estamos a censurar algo neles ou sobre quem nos queremos pronunciar em juízo. A essa vergonha associamos algo de indecoroso ou de coisa mal feita, criando em nós e talvez nos outros um sentimento desagradável com o receio de desonra ou de ridículo…
Se assim é ou pode ser interpretado, poderemos considerar que há por aí escondidas muitas vergonhas. Aliás, o termo ‘vergonhas’ exprime em linguagem popular aquilo que devemos esconder e não mostrar de forma indecorosa ou sem respeito. 
= Atendendo ao contexto do parlamento luso não será de considerar que muito daquilo que lá se passa é, de facto, um fenómeno de pouca vergonha nacional? Muitos/as dos que ocupam aqueles assentos não deveriam refletir sobre a vergonha pelo modo como se tratam nas discussões e tomadas de posição? Não haverá um pingo de vergonha que seja sobre a atitude malcriada com que se dão a conhecer nas intervenções uns dos outros? Sem pretensão de nenhum juízo de valor, não será uma vergonha o modo como vemos os parlamentares a contestarem as posições alheias, sem decoro nem respeito? 
= Urge, por isso, introduzir no léxico de tantos dos momentos de relacionamento das pessoas umas com as outras a referência à vergonha, na medida em que nem tudo vale, quando se trata de discordar, seja qual for o alcance da divergência. Na convivência cívica em que nos encontramos faltam muito as regras de educação e de civilidade, pois, a continuarmos a trilhar o caminho em que vamos, tornar-se-á impossível não entrarmos em conflito mais indecoroso e indesejável… e, então, vergonhoso.
Chega ou não chega de falar de vergonha?

António Sílvio Couto

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