Afirmar
que ‘muita gente vive à custa dos pobres’ é tanto mais escandaloso quanto óbvio:
retirem os pobres dos discursos dos políticos – dentro ou fora de campanha
eleitoral, nas decisões ou nas promessas – e pouco ficará na agenda e nas
notícias; cortem o que muitos sindicalistas almejam para com os pobres e
sucumbirão as reivindicações e as lutas; promovam, de verdade, tantos dos
pobres que estendem à mão às entidades sociais – entre as quais as da Igreja
católica – e perderão sentido certas ações de benemerência básica ou mais
subtil.
Verdadeiramente
os pobres devem ser ajudados, podem ser cuidados e precisam de ser
abolidos…desde que haja vontade social, política e até religiosa.
Conta-se
que um grupo de senhoras muito ‘caridosas’ se reuniu para dirimirem entre si um
problema: andavam a interferir – na sua linguagem a ‘roubar’ – umas com as
outras com os ‘seus’ pobres…tinham de voltar a respeitar o espaço de cada uma.
Por
muito que nos custe temos de enfrentar este problema humano, que tantas pessoas
escraviza: a pobreza… tenha ela a configuração com que a quisermos revestir.
Digamos:
– uns
são pobres no sentido mais material, sem meios de sobrevivência mínimos e
suficientes, somando milhões em todo o mundo e centenas de milhar em Portugal,
sobrevivendo com salários baixos, má condições de emprego e de habitação,
resultando isso em pessoas muitas vezes revoltadas, exploradas e à mingua de
pão, de compreensão e até de dignidade;
– outros
podem ser pobres na dimensão mais psicológica, onde os aspetos de ignorância,
de insuficiente educação e de negligência caminham à mistura com a submissão a
tentáculos de forças que usam os pobres para tentarem concretizar os seus
objetivos menos dignos, recorrentes e até subterrâneos...embora possa não haver
um inventário credível, vemo-los a salpicar muitas das nossa ruas, deambulando
sem nexo nem perspetivas de futuro;
–
quantos outros pobres podemos vislumbrar na dimensão espiritual, que é muito
mais do que meramente religiosa. De facto, quanta gente vive à solta ou à
deriva, sem nexo nem controlo, titubeando por entre meros interesses de
contexto individualista e à mercê de valores nem sempre condignos da conduta
humana. Talvez a expressão – ‘viver como se Deus não existisse’ – possa resumir
esta pobreza de índole espiritual, desde a mais básica até à mais complexa.
Para que servem tantas lutas e sacrifícios, tantos projetos e dedicações… se
tudo acabar na condição de sermos entes meramente materiais? Como se pode
dedicar uma vida – breve, média ou longa – só para que haja um contentamento em
prazeres passageiros, imediatistas e quase fúteis?
Efetivamente
tudo é (ou será) mais agravado se estas ‘pobrezas’ confluírem na mesma vivência
e em igual conduta. Talvez andemos excessivamente a cuidar em debelar a pobreza
material, mas não demos as devidas condições para combater a pobreza psicológica
e emocional nem a de incidência espiritual… Seria como que estivéssemos a construir
um edifício onde as traves principais estariam deficientes e as pinturas mais
ou menos bonitas, mas prestes a abrir fendas pela sua incipiente construção…
Num
tempo onde a expressão ‘qualidade de vida’ pretende rotular a vivência de um
certo bem-estar material, erradicar os pobres poderá ser para muitos dar de
comer e uns trocos de conforto, mesmo que isso não seja acompanhado do
necessário equilíbrio emocional e psicológico. Em muitos casos dá-se o peixe
pescado, mas não se ensina a pescar e tão pouco são dadas instruções para que
não se viva dependente daquilo que é dado em vez de fazer participar na solução
e não em prolongar o problema. Estes pobres presos pela boca continuarão a bajular
quem lhes alimenta a fome, controla a liberdade e condiciona o existir.
Aquele
estribilho – ‘são razões de viver o que nos falta’ – faz mais vítimas do que a
fome de alimento corporal, pois não ter razões de viver é bem mas grave do que
passar fome, pois esta pode ser debelada enquanto esse outro valor humano não
se preenche com papas e bolos…
Será de
perguntar com simplicidade: quais são as fomes que eu alimento? Ou ainda: de
que forma ajudo os pobres a libertarem-se das suas peias? Quais os enredos de
fome me preocupam mais?
António Sílvio Couto
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