Bastaram
dois dias de incêndios, em três concelhos da região centro/interior do país,
para subirem de tom as trocas de acusações sobre a taxa de responsabilidade –
real, presumida ou conveniente – sobre o que já correu mal.
É
cíclico este filme: uns dizem que fazem tudo, outros argumentam que se verifica
o seu contrário e outros ainda sentem-se agastados com as culpas aduzidas à
mistura com a incontornável falta de meios.
O verão
ainda é uma criança e o espetáculo vai-se alimentando à custa de milhares de
hectares de floresta ardida. Se tivermos em conta os números referidos envolvidos
no combate às chamas como que poderemos considerar que algo vai bastante mal:
milhares de pessoas – entre bombeiros, outras forças e muitos coordenadores –
surgem nas notícias, mas, de facto, custa a crer em tal mobilização, pois as
chamas crepitam sem haver quem as detenha. Aviões, helicópteros, carros de
bombeiros e de forças da ordem, da (dita) proteção civil e de segurança…e os
efeitos custaram a aparecer. Briefings e comentários, diretos e declarações,
análises e projeções…e as consequências são as mesmas dos anos transatos.
O que
mais custa a aceitar é que ninguém assuma as suas culpas: uns estão no piso
superior da imputação; outros sentem-se sem capacidade de assunção de
responsabilidades, tais são os meandros da fuga, da inoperância e mesmo da
incompetência; alguns preferem apontam o dedo aos de baixo, pois sabem que
parecem superiores à vulgaridade dos poucos que ainda habitam naquelas paragens
atingidas; muitos dos que perderam materialmente tudo – para já ainda a vida
escapou – não conseguem ter a coragem de se insurgirem contra quem os abandonou
como cidadãos dum país de classe inferior; poucos, muito poucos, se assumem
como voz tribunícia da denúncia profética e de serem capazes de não se deixarem
amordaçar por interesses nem sempre claros nem assumidos…
= Numa
espécie de provocação valeria a pena traçar uma linha vertical entre Chaves e
Faro – colocando dentro dessa mancha cidades como Vila Real, Bragança, Guarda,
Castelo Branco, Covilhã, Portalegre, Évora e Beja – e veríamos a forma como
este interior do país tem sido tratado pelas mais diferentes entidades públicas
e privadas, académicas ou associativas, empresariais ou laborais… para vermos
que esta faixa interior é esquecida, ofendida e ultrajada por tantos que deviam
gerar a inclusão e não o ostracismo…
Sem
qualquer empolamento poderemos considerar que as estruturas ligadas à Igreja
católica – dioceses e paróquias – são das poucas que resistem em votar ao
abandono tais populações por muito poucas que ainda sejam… Nessa região
abandonada porque não dá muitos votos e só lembrada quando há tragédias, há
pessoas que merecem respeito, dedicação e capacidade de igualdade de oportunidades,
de viverem como os do litoral e de serem cidadãos com direitos não-espoliados.
Façamos
um exercício de cinismo: se vendêssemos (ou meramente cedêssemos) esta faixa de
território à vizinha Espanha, certamente os que agora ali vivem seriam melhor
cuidados, teriam mais atenção e poderiam considerar-se europeus de
corpo-e-alma, coisa que até agora não parece sentirem.
= A
pior das constatações é essa de que muitos dos agora litoralistas têm raízes
nessa região do país e hipocritamente dizem regressar às origens, quando querem
viver as festas mais rituais do natal e das coisas populares mais ancestrais. É
vergonhoso que uma boa parte dos dirigentes da capital se esqueçam com tanta
facilidade das suas raízes e se tornem a descrença daqueles que os viram
nascer.
Cada
ano, pelo verão, os incêndios fazem lembrar, ao resto do país, que há muitos
portugueses que são esquecidos, embora sejam tanto ou mais dignos do que os
habitantes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Cada ano, quando
emergem os incêndios, vemos que há pessoas que amam a sua terra, mas que não
merecem dos políticos da capital mais do que considerações de negligência para
com as suas dificuldades em terem saúde, educação, segurança (social e de
policiamento), justiça…iguais os que cativam os votos e fazem barulho
reivindicativo.
Senhores
da capital – políticos, legisladores, dirigentes partidários, militantes dos
partidos, sindicalistas ou mesmo bombeiros – não se esqueçam. O Portugal
profundo não pode ser afundado por incúria ou por má-fé!
António Sílvio Couto
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