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terça-feira, 23 de abril de 2019

Tradições pascais…em maré de laicismo


Com alguma facilidade e divulgação vemos, em certas regiões do país, aparecer a expressão ‘tradição pascal’ como forma de classificar algo que se faz por ocasião da Páscoa e é apresentado como habitual e próprio desta época. O leque de assuntos/temas é um tanto diversificado, abrangendo desde a gastronomia até às (apelidadas) atividades culturais, passando por aspetos regionais ou mais difusos e atingindo vertentes religiosas, mais ou menos tradicionais até à inclusão de ‘tradições’ de outros países ou culturas.

O que mais me intriga é que tudo isto parece ser vivido sob um (diáfano ou tenebroso) manto de laicismo, onde uma boa parte dos intervenientes/usufruidores parecem fazê-lo de forma acrítica mais pelo benefício do que pela consciencialização das coisas, do sentido das mesmas e das implicações que elas trazem, de verdade. O laicismo coloca a suas regras ou nem as tem para ser mais laico ainda?

Tomemos por exemplo alguns ingredientes da gastronomia das ‘tradições pascais’, onde se usa o borrego, cabrito, cordeiro; os doces, entre os quais as amêndoas, o pão de ló, a bola do folar ou os ovos pintados; momentos de convívios entre famílias, vizinhos, associações ou comunidades… muitas vezes à volta da mesa e por mais tempo do que é habitual nos outros dias do ano…

Mas será que todos sabem o significado do uso de tais ingredientes como ‘tradições pascais’? Se abordássemos muitos dos nossos contemporâneos ficaríamos admirados com a falta de resposta adequada, no entanto, continuam todos a usufruir das coisas como se elas lhe dissessem alguma coisa ou coisa alguma…

Desde logo a inclusão do ‘borrego/cabrito/cordeiro’ tem raízes na celebração judaica da páscoa, como lemos nas narrativas do livro do Êxodo, onde se relata a libertação do povo israelita do cativeiro do Egito e que tiveram de comer à pressa o cordeiro que prepararam, pois o anjo de Deus passava nessa noite – vide Êxodo 12. Inclusive ‘páscoa’ quer significar ‘passagem’, tanto de Deus que passa e liberta o seu povo, como do povo que é libertado e passa para uma nova etapa da sua história e identidade…

O uso de ovos – desde a sua existência mais simples até ao seu uso na confeção de doces e outras iguarias – tem a ver com um sinal da vida… Talvez muitas crianças sejam levadas a pensar que dos ovos nascem coelhos ou que os coelhos dão ovos. No ovo está contida, em semente, a vida e os coelhos simbolizam também eles a reprodução em vida, tornando-se ambos sinal da vida que renasce em tempo de primavera…ao menos no hemisfério norte…

Porque as pessoas, em tempos de vivência rigorosa da quaresma, não usavam os ovos na alimentação, podiam, em maré da páscoa, confecionar doces e outros sinais de festa que eram partilhados uns com os outros e dados, particularmente, aqueles sobre os quais tinham alguma responsabilidade…espiritual. Daqui advém o costume, nalgumas regiões, de os padrinhos darem o folar por ocasião da páscoa, onde os ovos tinham maior significado e presença como sinal de amizade e de reconciliação… 

= Até agora percorremos algumas ‘tradições pascais’ que valem para crentes e não crentes, com estes a darem a impressão que nem sempre se questionam com as razões mais profundas de tais costumes. Agora vejamos outras ‘tradições pascais’ com marca mais cristã como as limpezas das casas, a visita pascal ou o compasso, as flores em abundância, os sons de sinos e música, procissões festivas…onde tem realce o ‘aleluia’, que não foi cantado na liturgia durante a quaresma.

A limpeza das casas, nalgumas regiões por dentro e por fora, com a caiação das mesmas, refere a consonância entre a casa de habitação e a purificação dos pecados na pessoa pela reconciliação sacramental… tudo isso para que Jesus ressuscitado seja bem recebido por cada um.

A visita pascal ou o compasso é esse momento de anúncio às pessoas e às famílias da alegria de Jesus ressuscitado…Em tempos muito conotado com a visita do pároco/padre às famílias tem vindo a renovar-se pela inclusão de leigos/as nesta tarefa de Igreja católica… Quem já tenha vivido isso perceberá que é um tempo de festa muito intenso, interessante e vivido. Após a contenção penitencial da quaresma, as flores, que abundam em tempo de primavera, dão um ambiente festivo e alegre, sendo, nalguns casos associada a música, os cânticos e os ‘aleluias’. Às procissões penitenciais e de Passos são contrapostas, durante o tempo pascal, momentos de procissão com motivos de alegria no âmbito mais social e exterior…      

 

António Sílvio Couto

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