Por
estes dias ouvi alguém que, referindo-se ao seu estado de saúde, dizia que não
estava habituado a queixar-se… até porque estamos em tempo de Quaresma.
A
capacidade de não-inquietude dos estoicos deixou alguns resquícios na forma
como nos foi transmitida uma certa dose de tranquilidade de ânimo ou a ausência
de inquietude na paixão de Cristo através dos Evangelhos: o longo, profundo e
interrogativo silêncio de Jesus em todo o processo a que foi submetido como foi
apresentado aos seus discípulos para quando estivessem em maré de perseguição,
de provação ou mesmo de confronto consigo mesmos e/ou com o exterior.
= Sem
querer abusar dos três sinais que caraterizam o nosso tempo – aspirina,
micro-ondas e fraldas descartáveis – percebe-se como se torna difícil não
reagir ao mais pequeno contratempo e ao constrangimento dos nossos prazeres.
Com efeito, a ‘apatia’, que fundamentava o processo de ataraxia dos estoicos,
está contraditado ao mais ínfimo pormenor pessoal, social e mesmo cultural.
Nada nem ninguém pode afetar a nossa ‘felicidade’, muitas vezes feita de
casmurrices se não mesmo de vícios e má-educação.
Quem
ousa apresentar a fé cristã onde se contenha pinceladas de sacrifício? Quem
tenta referir a dimensão sacrificial da missa, se sentir indícios de comichão
no assento dos ouvintes/praticantes? Quem não tenta ‘inovar’ na via-sacra para
que esta não nos confronte com os sofrimentos (físicos, psicológicos e morais)
de Jesus? Quem não dará voltas à imaginação para que não afugente o resto dos
praticantes, se lhes falarmos da entrega dos nossos sacrifícios em vez das
reivindicações habituais?
Estas e
outras questões se podem levantar quando nos aproximamos da vivência da ‘semana
santa’, onde meditamos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de
Cristo. Ele, que tanto sofreu por nós e em cujas chagas fomos curados, continua
a ser uma provocação ao nosso melaço de vida, onde nem os mínimos sacrifícios
enquadramos nesse Seu mistério de entrega por nós e pela nossa salvação.
=
Escutemos a voz do magistério sobre o modo como devemos conduzir-nos neste
tempo, que não é pior do que outros momentos do passado. Temos, sim, de saber
compreender os sinais de Deus para connosco.
«É salutar recordar-se dos primeiros cristãos
e de tantos irmãos ao longo da história que se mantiveram transbordantes de
alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande
resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil; temos,
porém,de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável ao
anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade
humana. Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca
doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos
ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva
mais da limitação humana que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje
é mais difícil; é diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos
precederam e enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta
finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que
nos ajudem a imitá-los nos nossos dias» - Papa Francisco, ‘Alegria do
Evangelho’, n.º 263.
À luz do
silêncio de Jesus, na sua paixão, poderemos aprender também nós o modo como Ele
nos conduz, verdadeiramente! Não haverá, por aí, muito desperdício de
sofrimento que poderia ser redentor e salvador? Não teremos de viver esta
continuada entrega de tudo e de quanto nos faz sofre para que haja abertura à
graça divina de tantos que precisam de intercessão?
Olhemos
a cruz vazia e ofereçamo-nos com Jesus. Adoremos o Senhor que jamais passará
pela cruz. Contemplemos a irradiação do Céu, quando soletramos a jaculatória: ‘nós
Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus, que pela vossa santa cruz remistes o mundo’…
ontem, hoje e por toda a eternidade!
A cruz
não esmaga, pelo contrário, levanta e eleva! A quietude estoica paralisa e
embaraça. A cruz é sinal de caminhada, os exoterismos estoicos fazem mergulhar
no narcisismo…
Os
estoicos serenam-se, os cristãos incomodam-se para que outros acolham a
salvação trazida por Jesus. O resto poderá ser pietismo barato ou devocionismo
de circunstância. Deixemos entrar Jesus, serenamente!
António Sílvio Couto
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