De entre
os adágios portugueses este tem vindo a manifestar a necessidade urgente de
correção. Outros quiseram fazer idêntica recauchutagem com os alusivos aos
animais, mas este – ‘entre marido e mulher não se deve meter a colher’ – tem
cada vez mais um imperativo moral, social e cultural.
De
facto, a apelidada ‘violência doméstica’ tinha neste adágio uma espécie de desagradável
suporte no linguajar português. Embora o que se diz não tenha tanta influência sobre
aquilo que se faz, este adágio foi como que uma espécie de tolerância capciosa
para muitos dos comportamentos de não-intromissão nos casos de violência
doméstica, tanto clara como presumida ou mesmo desculpada.
O
fenómeno de violência doméstica – entre marido e esposa e vice-versa; entre
pais e filhos e o contrário; entre os mais novos e os mais velhos e o inverso –
tem vindo a criar mais e mais vítimas, muitas delas inocentes, não só pela
idade mais também em razão das causas que as fizeram perecer.
Entretanto,
para entender, estudar e explicar este fenómeno sociocultural da violência
doméstica foram surgindo imensas associações em ordem a serem elencados os
temas da violência doméstica, tendo em conta as vítimas e os tipos de crimes:
entre homens e mulheres (casados ou não), para com os idosos, envolvendo
crianças e jovens, discriminações, crimes sexuais, homicídios…numa imensa rede
de estruturas e tentáculos com outros assuntos, práticas ou situações.
= Antes
de prosseguirmos a abordagem desta questão poderemos apresentar breves
questões: será a violência doméstica um fenómeno preferencial de pobres e de
pessoas sem instrução? Os episódios de violência manifestam as pessoas que
temos em família ou põem a nu a família que não somos? Porque vem agora a público
tantas notícias de violência doméstica, antes não existiam ou eram escondidos
com outros subterfúgios socioculturais mais sublimares? Que papel tem ou teve a
religião na violência doméstica, de aceitação, de tolerância ou de denúncia, de
tratamento ou de combate? Esta vaga noticiosa de casos de violência doméstica
favorece a estabilidade familiar, atual e futura? Quais as causas mais
profundas deste fenómeno, agora tão preocupante mais pelas consequências do que
pelas razões, que têm vindo a levar esta caraterização da nossa sociedade?
= Parece
não ser de difícil verificação que a sociedade está cada vez mais violenta. Ora
esta sociedade é constituída por pessoas/cidadãos, famílias,
associações/coletividades, igrejas, partidos, clubes… onde essa mesma violência
está patente não só nas palavras como nos atos, ações e comportamentos. Por
isso, a violência doméstica como sendo aquela que se dá em casa, no âmbito
privado e particular, recebe e influência a violência em geral. Com efeito,
como se podem criar leis que combatam a violência doméstica, se os políticos
nos espaços de intervenção – parlamento, autarquias, ações políticas, na
comunicação social – são agressivos, intolerantes e violentos…uns para com os
outros e cultivam um ambiente de crispação quase incontrolável?
Apesar
da consciencialização deste problema com tantas vítimas físicas, psicológicas,
emocionais, económicas… continua-se a falar do assunto como se ele fosse algo
alheio ao nosso comportamento, mentalidade ou mesmo dimensão cultural. Será
sempre inconsequente abordar o assunto culpando os outros e acusando-os de
serem os causadores deste mal, quando a violência tem de ser gerida e digerida
por cada um de nós a começar por si mesmo, sem atirar aos outros as razões que
não lhes pertencem.
Certas
caraterísticas dos nossos dias podem ser mais propícias e fomentadoras da
violência, seja ela doméstica, profissional ou mesmo ambiental. Assim, o
agravante egoísmo com que nos regemos nas relações com os outros; uma boa dose
de narcisismo quase-intocável da minha personalidade; o fechamento aos outros e
o empolamento do meu ‘eu’, por vezes, agressivo, intolerante e abusivo; o
desrespeito para com a liberdade alheia, as intromissões na esfera do privado e
a excessiva exposição da intimidade em casos que deviam ser mais reservados…
Isto e muito mais podem favorecer alguma da violência com que nos tratamos
diariamente, a começar por casa, que devia ser o santuário da nossa mais
profunda conduta e o lugar, por excelência, da convivência com os que nos são
mais próximos, a quem conhecemos e damos a conhecer…
António Sílvio Couto
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