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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Contra as ‘touradas’, saboreando caracóis


Vivemos num tempo em que nem sempre a congruência é o melhor lema de vida. Uma boa parte das pessoas é, no mínimo, ilógica, pois combate umas coisas e logo, na curva mais próxima, desdiz-se, praticando o que antes contestava.

Fique claro e distinto: não sou a favor nem contra as corridas e largadas de toiros. Respeito quem tal cultiva, seja porque faz parte da sua cultura, seja porque se possa sentir necessitado de tal afirmação social.

É verdade que, nos tempos mais recentes, os dados apontam para uma diminuição do número geral das corridas de toiros, notando-se a sua realização, sobretudo, nas terras ribatejanas e nalgumas localidades alentejanas.

Recordo uma conversa de café em que alguém menos bem entrosado nestas coisas das lides tauromáquicas perguntou: aqui, quando são as touradas? Ao que o interlocutor ripostou: cá há corridas, touradas só se for na sua casa!

Esta subtileza de linguagem dá a entender que esta coisa de andarem a contestar as ‘corridas/touradas’ pode nem sempre ser tão límpido como se possa imaginar.

Que dizer de forças partidárias que se coligam para atos eleitorais, mas que defendem coisas tão díspares nas suas entranhas em assuntos como este? Será por conveniência ou por camuflagem em assumirem as suas posições contra as corridas de toiros? A quem interessa enganar com aglutinados ideológicos, que não passam de composições de circunstância e que não afetam realmente o mais pragmático da vida? 

= Tipificação de certas discussões sobre as touradas/corridas de toiros é poderem ser feitas à volta duma mesa, saboreando caracóis. Ora, se atendermos à forma de confeção destes ‘moluscos gastrópodes terrestres de concha espiralada calcária’, serão tudo menos bem tratados, pois são cozinhados vivos e em lume brando… assim dizem as receitas para quem desejar confecioná-los.

Não haverá algo que se torna um tanto risível perceber que as malfeitorias dadas aos caracóis são irreversíveis, mesmo que as infligidas aos toiros possam vir a ser fatais? Será que é devido ao tamanho dos intervenientes que as posições se tornam tão diversificadas? Não estaremos, mais uma vez, a tentar confundir incautos, pela simples motivação de que razões culturais se possam atropelar com os desejos dos defensores/detratores?

Tal como supra referi que nada me move a favor ou contra as touradas/corridas, assim fique anotado que nunca comi nem pretendo experimentar comer caracóis… Em ambos os casos considero-me fora de lutas ou de degustações, tomando estas posições, faço-o por respeito cultural e gastronómico mais básico.

Que dizer ainda dos que apreciam lagosta: esta é cozinhada também viva e sob fogo bem mais acutilante dos que as farpas das corridas de toiros. Também aqui poucos filosofam sobre a tortura perpetrada contra tais crustáceos, pois lhe apensam estatuto económico e social, ao menos na visão dos que a tais requintes não têm facilmente acesso… 

= Digamos: há, no contexto cultural, sociológico ou económico em que nos movemos, uma razoável diversidade de situações e de questões que não se resolvem com posições de estar a favor ou contra, desde que isso possa ser aproveitado por alguns mais inflamados para a luta ideológica mais primária.

É certo que temos vindo a evoluir sobre alguns problemas de natureza humana mais essencial. No entanto, pululam por aí algumas incongruências bastante subtis: vermos os mesmos defensores da abolição das touradas/corridas a considerar o aborto como algo aceitável e recomendável, tanto na teoria como na prática. Não estaremos em campos diferentes na cultura da vida? Não andaremos a tentar resolver problemas individuais com regras generalistas? Não haverá confusão de planos ou essa turbulência torna-se razoável desde que se misturem propositadamente os valores em causa ou em risco?

Defendo que os valores culturais são respeitáveis e que podem e devem ser cuidados, na medida da nossa capacidade de compreensão. No entanto, nunca poderemos perder de vista que o nuclear da nossa cultura é a pessoa humana, tudo o que a possa ofender deve ser rejeitado. Será que cada um se respeita a si mesmo?       

 

António Sílvio Couto



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