A compaixão move a estarmos em comunhão com o sofrimento dos outros... ao perto ou ao longe. Verónica e Maria, mãe de Jesus, estariam, certamente, entre estas mulheres no caminho do Calvário. Neste novo quadro da via-sacra somos confrontados com a sensibilidade feminina. Ainda a sentiremos, hoje? Não estará em crise ou em decréscimo, para não dizer, em descrédito?
«27 Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no
peito e se lamentavam por Ele. 28 Jesus voltou-se para elas e disse-lhes:
«Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos
vossos filhos; 29 pois virão dias em que se dirá: ‘Felizes as estéreis, os
ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram.’ 30 Hão de, então,
dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’ 31 Porque, se
tratam assim a árvore verde, o que não acontecerá à seca?» 32 E levavam também
dois malfeitores, para serem executados com Ele» (Lc 23, 27-32).
Este é um texto próprio e específico do evangelho de São Lucas, evocando Zc
12,10-14: «Mas derramarei sobre a casa de David e sobre os habitantes de
Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a
quem transpassaram; chorarão por ele como se chora um filho único e
lamentá-lo-ão como se lamenta um primogénito».
Como é possível que alguém, em extremo sofrimento – como esse que Jesus estava
a viver há mais quinze horas ininterruptas e quase física e psicologicamente
exausto – ainda consegue citar textos da palavra das Escrituras? Algo de muito
forte O percorria e Lhe dava tal força e capacidade de leitura de tudo em ver
em Deus!
Nas palavras que dirige às mulheres de Jerusalém, que O lamentam e por Ele se
compadecem, Jesus cita Os 10, 8: «3Hão de, então, dizer aos montes: ‘Caí sobre
nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’», dando o evangelista uma interpretação
daquele momento trágico que era vivido.
Segundo a tradição há – no desenrolar da via-sacra – a intervenção específica
de duas mulheres – para além ou inseridas neste conjunto de ‘mulheres piedosas
de Jerusalém’ – Maria, mãe de Jesus e Verónica: quer uma quer outra exemplificam,
o mais corretamente possível, as atitudes de compaixão registadas pelas
mulheres de Jerusalém. Se bem que o evangelista São João (1) coloque Maria e
outras mulheres junto da cruz de Jesus (cf. Jo 19, 25-29), não vemos referência
alguma à sua presença, claramente, no caminho do Calvário. Será esquecimento ou
temos de encontrar algo mais profundo no modo com que João nos querer falar?
Seria possível incluir Maria na via dolorosa sem nos desviarmos do essencial?
Atendendo a que dos discípulos não temos referência alguma – todos fugiram, à
exceção de João – não deixa de importante que vejamos a presença de algumas
mulheres no caminho do Calvário.
Antes de mais: Maria, a mãe de Jesus, terá estado presente naquele momento
trágico do caminho do Calvário (4.ª estação). De que forma, não saberemos, mas
podemos supor na medida em que conheceremos o coração de uma mãe.
Deixamos, numa espécie de interpretação maternal, aquilo que o Papa emérito
Bento XVI nos deixou através de orações alusivas ao caminho da cruz:
«Na Via-Sacra de Jesus, aparece também Maria, sua Mãe. Durante a sua vida
pública, teve de ficar de lado para dar lugar ao nascimento da nova família de
Jesus, a família dos seus discípulos. Teve também de ouvir estas palavras:
«Quem é a minha Mãe e quem são os meus irmãos? (…) Todo aquele que fizer a
vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe»
(Mt 12, 48.50). Pode-se agora constatar que Ela é a Mãe de Jesus não só no
corpo, mas também no coração. Ainda antes de O ter concebido no corpo, pela sua
obediência concebera-O no coração. Fora-Lhe dito: «Hás de conceber no teu seio
e dar à luz um filho (…) Será grande (…) O Senhor Deus dar-Lhe-á o trono de seu
pai David» (Lc 1, 31-32). Mas algum tempo depois ouvira da boca do velho Simeão
uma palavra diferente: «Uma espada Te há de trespassar a alma» (Lc 2, 35).
Deste modo ter-Se-á lembrado de certas palavras pronunciadas pelos profetas,
tais como: «Foi maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como cordeiro
levado ao matadouro» (Is 53, 7). Agora tudo isto se torna realidade. No
coração, tinha sempre conservado as palavras que o anjo Lhe dissera quando tudo
começou: «Não tenhas receio, Maria» (Lc 1, 30). Os discípulos fugiram; Ela não
foge. Ela está ali, com a coragem de mãe, com a fidelidade de mãe, com a
bondade de mãe, e com a sua fé, que resiste na escuridão: «Feliz daquela que
acreditou» (Lc 1, 45). «Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará fé
sobre a terra?» (Lc 18, 8). Sim, agora Ele sabe-o: encontrará fé. E esta é,
naquela hora, a sua grande consolação.
- Santa Maria, Mãe do Senhor, permanecestes fiel quando os discípulos fugiram.
Tal como acreditastes quando o anjo Vos anunciou o que era incrível – que
haverias de ser Mãe do Altíssimo – assim também acreditastes na hora da sua
maior humilhação. E foi assim que, na hora da cruz, na hora da noite mais
escura do mundo, Vos tornastes Mãe dos crentes, Mãe da Igreja. Nós Vos pedimos:
ensinai-nos a acreditar e ajudai-nos para que a fé se torne coragem de servir e
gesto de um amor que socorre e sabe partilhar o sofrimento» (2).
Outra figura, digamos da piedade popular, é Verónica – ‘vera icone’, isto é,
verdadeiro rosto – surge na longa tradição do cristianismo como aquela que
rompeu por entre a multidão e os soldados para ir limpar o rosto ensanguentado
e a cabeça coroada de espinhos de Jesus. Em reconhecimento desta ousadia – diz
a tradição – ficou impresso no lenço o verdadeiro rosto de Jesus. Em contraste
– alguma brutalidade – com aquilo que veremos dos soldados, podemos observar a
delicadeza (feminina, humana e espiritual) dessa mulher que ficou registada
para sempre na memória do cristianismo.
Deixamos uma interpretação do Papa João Paulo II sobre esta figura da Verónica
(5.ª estação), tanto sobre o passado, como para o presente e na dinâmica do
futuro.
«A tradição fala-nos da Verónica. Talvez aquela complete a história do Cireneu.
Na verdade, embora - mulher que era - não tenha levado fisicamente a Cruz nem a
isso tenha sido forçada, o certo é que esta Cruz com Jesus, ela a levou:
levou-a como podia, como lhe era possível fazer naquele momento e como lho
ditava o coração, isto é, enxugando o seu Rosto.
A explicação deste facto, referido pela tradição, parece fácil também: no lenço
com que ela Lhe enxugou o Rosto, ficaram gravadas as feições de Cristo.
Precisamente porque estava todo ensanguentado e soado, podia deixar traços e
lineamentos.
Mas, o sentido deste acontecimento pode ser interpretado também doutra maneira,
se o analisarmos à luz do discurso escatológico de Cristo. Serão muitos, sem
dúvida, aqueles que vão perguntar: “Senhor, quando é que fizemos isto?”. E
Jesus responderá: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (cf. Mt 25, 37-40). De facto, o Salvador
imprime a sua imagem em cada ato de caridade, como o fez no lenço de Verónica»
(3). Valerá a pena recordar essa voz lancinante das procissões de Passos, que
colocava nos lamentos de Verónica esse desafio: ó vós todos que passais, olhai
e vede, se há dor semelhante à minha dor…
Não podemos esquecer as palavras com que Jesus adverte as mulheres de
Jerusalém: «não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos
filhos» (v. 28). Com efeito, para além de um mero sentimentalismo, é preciso
conversão, na vida e com sinais de aferição a Jesus, à sua palavra/mensagem de
acolhimento de Deus e uns dos outros…
1. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de
Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, pp. 180-182.
2. Cf. Bento XVI/Cardeal Ratzinger, ‘Via-sacra - meditações e orações’, 9 de
março de 2019 (4.ª estação).
3. Cf. João Paulo II, ‘Via-sacra no Coliseu’. Sexta-feira santa do ano de 2003
(6.ª estação).
António Sílvio Couto
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